Muito se escuta falar que a democracia no Brasil está em perigo, com pessoas indo às ruas para pedir a volta do regime militar e ações políticas antidemocráticas que estimulam ataques a direitos sociais, será que realmente isso é verdade? ou esses atos são parte de um regime político que permite a liberdade de expressão? Em março o Instituto V-Dem, que significa “Variedades da Democracia”, apresentou o 5º Relatório Anual de Democracia, com um resumo do estado da democracia liberal no mundo no ano de 2020 em relação aos últimos 10 anos e uma abordagem especial sobre os efeitos da pandemia Covid-19. Como será que o Brasil se saiu de acordo com esse relatório?
O V-Dem é um instituto de pesquisa independente fundado em 2014 e financiado por diversas organizações governamentais, Banco Mundial e outras instituições de pesquisa, e a sede do projeto está localizada no departamento de ciência política, Universidade de Gotemburgo, Suécia. É o maior programa de pesquisa internacional para medir a qualidade das democracias, e que conta com 3000 pesquisadores em todo o mundo.
O foco do Relatório Anual de Democracia em 2020 foi o “ano de bloqueio”, por conta da pandemia e, de forma resumida, os dados apontam que a maioria das democracias tem agido de forma responsável nesse período de restrições. Apesar dessa aparente calma o relatório alerta que será necessário eliminar imediatamente, após o fim da pandemia, todas as barreiras e bloqueios impostos para que não se prejudique direitos dos cidadãos.
O relatório afirma que o mundo, ainda que seja mais democrático do que era nas décadas de 70 e 80, permanece no declínio global da democracia liberal. De forma comparativa o cidadão de 2020 experimenta o nível de democracia que tinha um cidadão em 1990. As Autocracias eleitorais continuam sendo o tipo de regime mais comum e cabe um destaque à Índia, que sob o governo do primeiro-ministro nacionalista hindu de extrema direita, Narendra Modi, tem passado gradualmente de uma democracia vibrante para um estado teocrático hindu.
Em números as autocracias eleitorais e fechadas são lar de 68% da população mundial. Enquanto isso, o número das democracias liberais está diminuindo para 32, com uma parcela da população de apenas 14% e as democracias eleitorais representam 60 nações, 19% da população. Esses percentuais representam uma onda acelerada de autocratização que atinge 2,6 bilhões de pessoas que vivem em 25 nações, como Brasil, Índia, Turquia e, até então, os Estados Unidos da América. Essa autocratização, segundo o relatório, segue um padrão: ataque do governo à mídia e sociedade civil, polarização da sociedade, desrespeito aos oponentes, divulgação de informações falsas e promoção de dúvidas sobre a lisura das eleições. A Polônia leva uma duvidosa “liderança” como o país que mais declinou durante a última década e três novas nações se juntaram aos principais autocratizadores: Benin, Bolívia e Maurício.
De forma pedagógica a Autocratização se refere a uma concentração de poder nas mãos de um líder forte, que afirma conhecer a “vontade do povo” e que governa em seu nome. Nesse regime os direitos fundamentais garantidos, como a liberdade de expressão dos indivíduos e dos meios de comunicação, e os princípios democráticos básicos, como a separação de poderes, ficam suspensos ou sob ameaça. Líderes autocráticos se esforçam para prolongar seu mandato e chegam a reivindicar sua permanência no poder de forma vitalícia.
Especificamente sobre o Brasil o relatório da V-Dem afirma o país está entre os 10 maiores declínios da democracia no mundo e, em nível geral, nove entre os dez foram democracias eleitorais ou mesmo liberais em 2010. Brasil, Maurício e Polônia são, desses nove, que permanecem democracias, as demais agora são apenas democracias “eleitorais”. O “TOP-10” das nações “autocratizantes” na ordem decrescente: Polônia, Hungria, Turquia, Brasil, Sérvia, Benin, Índia, Mauricio, Bolívia e Tailândia.
O relatório também cita o Brasil da seguinte forma: “Censura governamental e hostilidade contra mídia não partidária cresce constantemente no Brasil, especialmente depois que populista da direita Bolsonaro se tornou presidente em 2019, incluindo disseminação governamental de informações falsas”.
Independente do país e governante a ser citado o que se tem de concreto é que o mundo parece funcionar como um pêndulo, uma hora tendendo para regimes democráticos e em seguida flertando com regimes autoritários. O cientista político, Samuel Philips Huntington, norte-americano e influente nos círculos politicamente mais conservadores, falava que desde o século XIX os Estados passam por mudanças em seus processos políticos e afirmava a existência de “ondas” de tendências mundial, nas quais uma hora os países se tornavam democráticos e em seguida seguiam o caminho reverso.
O cientista político detalhou que a primeira onda de democratização ocorreu no período de 1828 a 1926. Em seguida veio uma onda reversa de “desdemocratização” ou autocratização durante os anos de 1922 a 1942 e nesse intervalo de tempo ocorreu o surgimento de regimes autoritários como o nazismo de Hitler e o fascismo de Mussolini. A segunda onda de democratização ocorreu de 1943 a 1962, logo após a segunda guerra mundial, e como na primeira veio logo em seguida uma onda reversa, entre 1958 e 1975, com a Guerra Fria e diversos governos ditatoriais “militares” pelo mundo.
Huntington afirmou que a terceira onda de democratização se iniciou no ano de 1974, com a Revolução dos Cravos em Portugal, movimento que derrubou o regime ditatorial chamado de Estado Novo ou salazarismo, em referência à Antônio de Oliveira Salazar, e iniciou a reconstrução da democracia portuguesa. Essa revolução em Portugal influenciou diversos países que passavam pelos mesma situação, sobretudo os países latino-americanos e africanos.
Falecido em 2008, Huntington previa que a terceira onda reversa ou de autocratização seria causada por “falhas sistémicas dos regimes democráticos para operar efetivamente e que podem solapar sua legitimidade”, “um colapso econômico geral internacional”, uma guinada para o autoritarismo dada por qualquer grande potência democrática ou democratizadora”, “a autocratização de vários pequenos países recém democratizados com efeito em outros países de uma mesma região”, “o expansionismo político-militar de uma potência não democrática atentando contra a soberania de países de orientação democrática” e “o surgimento de novas formas ou de estilos de autoritarismos”.
O Relatório Anual de Democracia aponta que atualmente 68% da população mundial vive em autocracias e 10 anos atrás esse percentual era de 48%. Ao olharmos para os pensamentos de Huntington temos que refletir e fazer as seguintes perguntas: será que já estamos na terceira onda reversa? Como vai nossa democracia?