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“Estátuas históricas podem ser pintadas”

Foi preciso um especialista em arte, de Porto Alegre, saber do ocorrido com a estátua de Tenreiro Aranha, em Manaus, para acabar com a celeuma em torno da pintura dourada feita na peça histórica pela artista plástica Rosa dos Anjos. José Francisco Alves é doutor e mestre em História, Teoria e Crítica de Arte, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; especialista em Gestão do Patrimônio Cultural, pela Universidade Luterana do Brasil; e bacharel em Escultura, também pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É autor de inúmeros livros, capítulos de livros, artigos em revistas e em jornais periódicos, em assuntos sobre história da arte, artistas e patrimônio cultural. É professor de Escultura no Atelier Livre Xico Stockinger, desde 2000. Membro do Icomos (Conselho Internacional de Monumentos e Outros Sítios), Icom (Conselho Internacional de Museus), e Aica (Associação Internacional de Críticos de Arte) e membro pesquisador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Para José Francisco, não é absurdo algum Tenreiro Aranha ter ficado dourado, conforme falou ao Jornal do Commercio.

Jornal do Commercio: O que o sr. achou de a artista plástica Rosa dos Anjos ter pintado a estátua de Tenreiro Aranha?

José Francisco: O que me chamou a atenção foram as críticas no sentido da cultura escultórica, que não correspondem. Eis que foram passados ‘conhecimentos’ equivocados sobre este tipo específico de arte pública (estatuária histórica) no sentido, ao que me parece, de denegrir a iniciativa e causar polêmica, escândalo puro e simples. O que me irrita, é que nunca há esta ‘energia’ para denunciar o vandalismo, em colaborar para a educação do povo à importância dos monumentos, em valorizar a arte em forma de arte pública e história, mas, sim, há muita disposição em fazer ‘caça’ aos monumentos e às iniciativas de suas recuperações, limpeza e manutenção.

JC: Uma estátua histórica, como a de Tenreiro Aranha, pode ser pintada de dourado ou outra cor?

JF: A estatuária em bronze fundido dos monumentos comemorativos, históricos, pode ser pintada. Até mesmo pode ser pintada a estatuária em ferro fundido, a exemplo dos chafarizes e estátuas franceses e britânicos. Com a febre de monumentos históricos do século 19 e 20 (Europa e Américas, principalmente), foi comum ‘pintar’ estátuas em dourado, com folhas de ouro mesmo. Para dar o aspecto de nobreza, de destaque da figura alegórica ou do personagem. Temos exemplos em Porto Alegre, Paris, Nova Iorque e Chicago. Essas obras, de 100 anos ou mais, não tem manutenção e o douramento original se perde. Então, utiliza-se pintura, onde não há recurso. A estátua da república, que encima o monumento a Júlio de Castilhos, tombado pelo Iphan, em 1913, em Porto Alegre, era dourada, folheada a ouro. Com o tempo, perdeu. Nos anos de 1990, o monumento foi limpo e a estátua foi pintada de dourado, o que recebeu críticas de quem não conhecia, igual em Manaus.

JC: Afinal de contas, a pátina protege ou destrói as estátuas de bronze?

JF: Não se sabe. A pátina que existe em quase todos os monumentos históricos brasileiros, do final do século 19 até meados do 20, não são originais. Sabe-se lá que pátina eram as originais, porque constantemente alteradas pelas sucessivas limpezas, pinturas a qualquer modo e restauros eficientes ou ineficientes, no dia a dia do cotidiano das administrações. O que se pode perceber, por meio de fotografias e/ou documentos, quais eram pintadas. O restauro de monumentos, da parte estatuária em bronze fundido, pode ser feito até pelos mais capazes e assim mesmo apresentar problemas. O monumento a Júlio de Castilhos, restaurado em 2017 por um dos maiores especialistas do mundo, apresenta manchas terríveis, que apareceram logo em seguida.

JC: Teria algum problema pintar o Davi, de Michelangelo, por exemplo?

JF: Teria, pois seria um crime contra a humanidade. As estátuas de mármore pintadas eram da antiguidade clássica. Ali importava o mármore disponível e a expertise dos mestres para esculpir. Depois, eram obviamente pintadas. O gosto por estátuas de mármore não pintadas surgiu em admirar as estátuas da antiguidade, sem pintura, porque ninguém sabia que haviam sido pintadas. Em dez séculos, até o Renascimento, elas já tinham perdido completamente as cores. E daquela forma, não pintadas, eram os chamados modelos clássicos, a grande referência a todos os escultores modernos. Veja o Aleijadinho, as capelas com conjuntos estatuários, em Congonhas/MG. O escultor da humanidade as fez, sem pintar. Coube a outro(s) pintar, depois da sua morte.

JC: O que tem a dizer sobre a pintura da estátua de Tenreiro Aranha, até porque a pintura já está até saindo?

JF: À distância, não há o que eu dizer como foi feito, como deveria ser feito. O que digo, é que me parece que era pintada de dourado, e que estas estátuas de bronze serem pintadas, não podem causar estranhamento algum.

JC: Fale sobre seus livros.

JF: Trabalho com arte pública há quase 30 anos, muitos livros, artigos em livros, revistas no Brasil e no mundo, e em jornais periódicos. E o meu próximo livro, que trabalho há anos, é sobre as Fontes d’Art no Brasil. Fontes é um termo francês para obras em ferro fundido. No caso, estátuas e chafarizes, produção que virou febre mundial em meados do século 19, e a França (região do Haute-Marne) foi o maior polo. Manaus tem um dos mais importantes acervos no Brasil dessa arte, no Teatro Amazonas (na parte externa e possivelmente interna), palácios, coretos, chafarizes e estátuas de praças, estas duas últimas possivelmente de origem dos concorrentes dos franceses, os britânicos. Tenho imenso interesse em conhecer a arte pública de Manaus, seus monumentos do passado e atuais. Conheço in loco os de Belém, e faço ideia do que deve ter em Manaus, nas ruas, edificações e até nos cemitérios.

Site de José Francisco: www.curador.art

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Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio
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