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As comidas amazônicas que os manauaras esqueceram

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Nós mudamos, e mudam também as coisas à nossa volta e, na maioria das vezes não percebemos. Se olharmos fotos de uma semana, um mês, um ano atrás, quanta diferença. Se pegarmos fotos de há alguns anos, não somos mais nós, o modo de vestir é outro, as gírias mudaram, até as comidas de que tanto gostávamos, podem ter desaparecido, esquecidas no tempo.

“Quando eu era menino não existiam supermercados em Manaus e todo mundo comprava seus alimentos no mercadão Adolpho Lisboa, frutas, verduras peixes e carnes do dia. Nada era congelado e nem do dia anterior”, lembrou o advogado e escritor Gaitano Antonaccio.

“Dona Neuza, minha mãe, costumava fazer ‘cabeça de galo’, uma comida típica do Nordeste: pirão com ovos e um caldinho, temperado com cebola, tomate, pimentão, coentro, alho, pimenta do reino, colorau. Enche que é uma beleza. Tinha também o caldo de mocotó com azeite doce, e o filhós de trigo com ovos e carne”, lembrou.

“Com carimã, ela fazia mingau no café da manhã. Carimã é a fécula da mandioca. Ainda fazia pamonha de carimã. Também no café da manhã tinha mingau de banana pacovã verde. Os meninos de hoje não sabem nem o que é isso”, lamentou.

“Na sobremesa podia ter doce de jambo. Era tão gostoso que era servido no almoço, no jantar e quando desse fome. E a geléia de maracujá do mato, fruta antes abundante nas redondezas de Manaus? Hoje nem mais encontramos essa fruta”, disse.

“Quando adoecia, o fortificante era o caldo de caridade, farinha com pimenta do reino; ou o chibé, farinha com limão e açúcar. Eram alimentos feitos por nossas mães, aprendidos com as mães delas, sem corantes, sem conservantes. Nada de antes”, brincou.

 

Arabu ou mujanguê

O pesquisador do Inpa, Afonso Rabelo, nasceu em Canutama e lembra que o prato mais consumido pelas pessoas na sua cidade era a caldeirada de peixe salmourado e seco ao sol.

“Porque não tinha energia elétrica e o gosto ficava bem melhor”, garantiu.

“Quando não tinha comida o pessoal fazia a jacuba, farinha com água e açúcar, porque o que não faltava nas casas era farinha”, recordou.

“Aqui em Manaus chamam de arabu, mas lá em Canutama a gente chamava de mujanguê. É a gema dos ovos de tracajá batidos com farinha e açúcar. Tem gente que coloca sal. Até a minha infância, no início dos anos de 1970, ainda se comia ovos de tracajá, em Manaus. Depois ficou proibido e essa iguaria se tornou cada vez mais rara”, disse.

“Outro prato que minha mãe, dona Nadir, fazia era jerimum cozido e amassado, com leite; e mesmo gemada de ovos de galinha com açúcar”, recordou.

“Já em Manaus, até a década de 1970, pelas ruas encontrávamos os pirulitos de gengibre vendidos enfiados no tabuleiro. Era um doce endurecido, de açúcar, acrescido de gengibre, para dar gosto. Tinha também o rala rala, xarope de frutas, de cores vivas e variadas, servido junto com gelo raspado. Lembro do picolé de creme holandês, um picolé róseo, muito gostoso, mas não sei porque tinha aquela cor, bem como da paçoca de milho. Depois de adulto conheci o fabricante dessa paçoca, aqui no Inpa”, falou.

Tartarugas nos currais

O bibliotecário Geraldo dos Anjos não esquece das tartarugadas que a mãe, dona Joana dos Anjos, fazia.

“As tartarugas eram compradas vivas, no mercado Adolpho Lisboa, onde ficavam em currais, ou podia se comprar ¼ delas. Num dos pratos, minha mãe tirava toda a tripa do animal, limpava, cozinhava com arroz e temperos, e depois colocava de volta dentro da tartaruga para assar. Já do iaçá se tirava a cabeça e era assado inteiro, com casco e tudo. Depois abria o casco e comíamos a carne temperada com limão, pimenta e sal”, revelou.

“Nossa casa, na Cachoeirinha, tinha um quintal imenso, onde minha mãe criava galinhas, patos, porcos, carneiros, que viravam alimentos”, falou.

“Um prato que ela fazia era fígado com bobó, cortados em cubinhos, temperados com pimenta de cheiro, cheiro verde, cebola, tomate, pimentão. Hoje quase não encontramos nenhum dos dois em restaurantes. É comida caseira mesmo”, concordou.

“Minha avó Febrônia só tomava café torrado na hora. Ela comprava os grãos, torrava no fogareiro, depois misturava com açúcar, pilava e peneirava. Já a goma era comprada em pedaços, sem ser peneirada. Aqueles pedaços eram jogados numa frigideira com óleo e depois transformados em rosquinhas para comermos com café. Esses são apenas alguns dos pratos feitos pela minha mãe e por minha avó, que lembro agora, mas tinham vários outros, e que hoje em dia acho difícil alguém fazer. Eram de uma época em que as pessoas tinham tempo, diferente de hoje, quando só vivemos ocupados”, reclamou.

Pratos somem, pratos surgem

A paulista Ana Scognamiglio, proprietária do flutuante Peixe Boi, chegou a Manaus há mais de 30 anos e, no começo, quis servir para os seus clientes os pratos que conhecia bem: massas.

“Mas logo começaram a pedir peixes, jaraqui, tucunaré e tambaqui. Naquela época eu pescava tucunarés aqui da beira do flutuante. Hoje praticamente não existem mais”, explicou.

“Realmente, naqueles anos, os restaurantes de Manaus serviam tucunaré como peixe nobre. Se hoje eles sumiram dos cardápios, não é porque as pessoas deixaram de apreciá-los, mas é porque ficaram raros e caros. É o peixe que mais aprecio, entre todos os que conheço aqui no Amazonas”, admitiu.

“Assim como pratos somem, pratos surgem. Ninguém pedia pirarucu no flutuante, aí eu comecei a fazer filé de pirarucu à milanesa, da parte branca do lombo. Esse mesmo prato eu fazia lá em São Paulo, com a pescada. Hoje o filé de pirarucu à milanesa é um dos pratos mais requisitados no Peixe Boi”, informou.

“Comida da minha infância, que lembro até hoje, e nunca mais comi é quebra-queixo, vendido em tabuleiro e cortado com uma espátula. Soube que aqui em Manaus tinha, com muita castanha. Lá em São Paulo era com coco”, concluiu. 

 

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
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