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A constituição do Império duzentos anos depois

Breno Rodrigo de Messias Leite*

No último dia 25 de março, celebramos os duzentos anos da outorga da primeira constituição do Brasil, a Constituição Política do Império do Brasil. A data não poderia passar em branco. Afinal, a Constituição de 1824 consolidou as realizações políticas da Independência Nacional, em 1822, e definiu os termos jurídicos da mais nova nação do continente americano. 

O arranjo institucional da Constituição do Império está envolto das contradições de sua época. Guiada inicialmente pelo espírito liberal de Bonifácio de Andrade e Silva (o maior estadista brasileiro do século XIX e artífice da Independência), a Constituição também carrega o espírito absolutista da tradição portuguesa. O sofisticado sistema de tripartição do Estado em poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (heranças do constitucionalismo francês modelado por barão de Montesquieu) passa a conviver com o instituto do Poder Moderador (uma formulação do teórico franco-suíço Benjamin Constant) exercido pelo monarca, o soberano, o “deus mortal” hobbesiano.

No seu conjunto, “a chamada Constituição de 1824 é inteligente”, conforme expressão do historiador Francisco Iglésias. Afinal de contas, insiste o historiador mineiro, “exprime a sua época, não no que havia de mais avançado, mas de moderação. Traduz a influência europeia, não a norte-americana. Sua principal fonte é a Carta de 1814, outorgada por Luís XVIII. O radicalismo de 1789 fora contido, é a vez da Restauração na França. Apresenta uma originalidade no direito: a consideração de quatro poderes. Inspirado em Benjamin Constant, não se repete o esquema clássico dos três poderes, mas os três acrescidos de um, o Moderador. Constant falara mesmo em cinco. O Poder Moderador é exercido pelo imperador e visto como ‘a chave de toda a organização política.’”

A Constituição de 1824 não deixa de ser uma síntese confusa do voluntarismo do constitucionalismo liberal e dos fundamentos absolutistas e centralizadores do ancien régime do Estado patrimonial português.        

O processo de redação da Constituição de 1824 foi liderado por uma Assembleia Constituinte com cem representantes convocada por dom Pedro I, e inicia os seus trabalhos no dia 3 de maio de 1823. A Assembleia Constituinte era composta principalmente por membros da elite luso-brasileira, incluindo aí proprietários de terras, comerciantes e nobres. A participação popular era restrita, e a Assembleia foi marcada por disputas políticas e conflitos de interesses entre diferentes facções próximas ao imperador.

A Constituição de 1824 está estruturada em quatro grandes pilares: a centralização do poder na figura do imperador; o funcionamento do sistema bicameral; direitos civis restritos; e manutenção do sistema agroexportador. Vejamos, pois, cada um.

Concentração e centralização do poder na pessoa do imperador. A Constituição de 1824 estabeleceu um sistema político altamente centralizado, no qual o monarca detinha considerável poder de decisão governamental. Dom Pedro I tinha autoridade para nomear e exonerar ministros de Estado, convocar e dissolver a Assembleia Legislativa e intervir nos assuntos provinciais.

Sistema bicameral. O sistema legislativo era composto por duas câmaras interligadas: a Câmara dos Deputados e o Senado. No entanto, a influência do monarca era predominante nas duas casas legislativas, e a participação popular na política era limitada tanto em termos de participação partidária como na participação eleitoral.

Direitos civis eram restritos. Embora tenha garantido algumas liberdades individuais, como a liberdade de expressão, de opinião, de imprensa e a liberdade religiosa, a Constituição de 1824 impôs várias restrições aos direitos civis. Por exemplo, apenas proprietários de determinado valor tinham direito a voto, e a escravidão foi mantida, apesar das pressões britânicas pela sua abolição imediata.

Manutenção do sistema de dominação agrária. A Constituição refletia as ideias conservadoras da elite agrária, comercial e agroexportadora brasileira. Protegia os interesses dos grandes proprietários de terras e estabelecia um sistema econômico baseado na grande lavoura de monocultura agrícola, no trabalho compulsório e no modelo exportador dependente das grandes metrópoles europeias, sobretudo a Grã-Bretanha.

A Constituição de 1824 teve um impacto significativo na história do Brasil. Embora tenha fornecido uma estrutura governamental estável (exceto no período Regencial), também perpetuou desigualdades sociais, econômicas e raciais; além dos mais, limitou drasticamente a participação da maioria da população aos direitos e à cidadania. A sua natureza autocrática e centralizadora contribuiu para o descontentamento popular nas províncias, para o ressentimento dos militares e para a insatisfação da Igreja Católica já distante da coroa.

Apesar de suas limitações institucionais, a Constituição de 1824 representou um passo importante na consolidação da identidade nacional brasileira e na afirmação da Independência do Brasil. Nas palavras de Francisco Iglésias, é importante termos em mente que “se foi expressão da época, não se acuse o texto de 1824 de retrógado, se estabelecia o considerado certo. Nele, como nas leis do Império, consignaram-se as ideias possíveis em uma sociedade pouco aberta, hierarquizada, com sentido conservador da maioria dos políticos.” Ao fim e ao cabo, uma constituição é filha de seu tempo; refém das circunstâncias históricas.

*é cientista político

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