4 de outubro de 2024

Tanta história para tão pouco chão

“À leitura deslizante ou horizontal, um simples patinar mental, é preciso  substituir pela leitura vertical, a imersão no pequeno abismo que é cada  palavra, fértil mergulho sem escafandro.” 

José Ortega y Gasset 

Sempre gostei de ler. Os livros me foram apresentados por parentes que  gostavam e respeitavam muito todo tipo: romances, contos, técnicos, enciclopédias  – que eram nossa busca de internet na época – e até dicionários. Lia pedaços de  textos em jornais, revistas e nesta época tinham muitos jornais e muitas revistas. As  bancas de revistas eram super coloridas, diversificadas, tinha muita opção para todo  tipo de leitor. Eu colecionava histórias em quadrinho e ia muito nas bancas  especializadas em revistas usadas, para venda, compra e troca. Trocava as  revistinhas mensais de contos de suspense e de crime, a Ellery Queen que minha  mãe adorava. Ia juntando aquele monte de revistinhas e depois eu ganhava, as  mais antigas claro, para ir fazer trocas na banquinha de revistas usadas.  Das HQ às enciclopédias no papel e aos pixels da internet 

Aí vinha de tudo: Tarzan, Mandrake, Príncipe Valente, Flash Gordon,  Fantasma, tinha Batman e Super Homem também e as da Disney, do Bolinha,  Luluzinha, muita coisa. Algumas em preto e branco, outras coloridas. Na época as  HQ nem eram muito respeitadas como boa leitura, mas me enriqueceram muito não  só pelo texto mas também pelo desenho. Em casa tinham muitos livros, uma  coleção do Monteiro Lobato, que além de estórias com seus personagens do Sítio  do Pica-pau amarelo adaptou muita coisa, lendas, folclore e histórias do mundo.  Tinha Robin Hood, Sherlock Holmes, Agatha Christie, Simenon, Arsène Lupin,  histórias de antigas civilizações do Egito aos Maias.  

Gostava mais de contos porque dava para ler mais rapidamente e entender  toda a trama. Nos romances de mais páginas, eu tinha um problema, muitas vezes  não conseguia ler o livro inteiro e já pulava para outras coisas. Muito tempo mais  tarde, um amigo, Aércio Flávio Consolin, professor e escritor premiado, numa  conversa onde comentei minha dificuldade de ler por inteiro um romance e por isso  achar que não era um bom leitor – apesar de gostar muito – me disse que ler era isso  mesmo, ter o prazer de ver textos, nem que fossem pequenos trechos e se deliciar  com eles. Entender formas que autores utilizam para colocar idéias e sentimentos  despertando sensações em quem lê. Isso de algum jeito me liberou e assim li muito  mais e com mais prazer. Sem a obrigação que antes me prendia de ter que  terminar tudo que começava. Antes eu me frustava quando não ia até o final. Depois  desta conversa consegui ler trechos de muitos e muitos autores.  

Pedaços que enriqueceram minha formação, enriqueceram minha imaginação.  Lembro de um trecho de um romance dele, Fadário, que conta uma história  verdadeira de sua família antes dele nascer, onde uma tia mata seu marido, seu tio,  envenenando-o com arsênico por estar apaixonada por um jovem. A cena se passa  num casarão velho, onde moravam numa cidadezinha do interior de São Paulo, que  tinha um corredor escuro e longo que ligava cômodos da casa levando à sala  principal. No meio deste corredor tinha uma clarabóia que projetava um facho da luz  do sol e fazendo um retângulo iluminado no velho chão surrado de madeira. 

Olhando este pedaço iluminado, muito tempo depois da morte dos  personagens verdadeiros do romance, imaginando quanta gente, quanta história,  tantas preocupações e prazeres que passaram por aquele pedacinho de chão em  tantos anos, ele escreve: “…tão pouco chão para tanta história.” Parei neste trecho,  e até hoje minha imaginação voa despertando lembranças e sensações imensas.  Como se fizéssemos uma janelinha naquele pedacinho de chão por onde  poderíamos olhar o tempo passando em flashes, vivenciando angústias,  esperanças, amores, dores, prazeres, horrores, ódios e alegrias de gerações  passadas e de alguma forma vivenciando as nossas, numa analogia inevitável.  Entrevistas também sempre me atraíram. A chance de poder partilhar conversas  com autores, artistas e pessoas interessantes e que de outra forma não poderíamos  conhecer e compartilhar suas idéias. O poder de congelar no tempo um papo e  poder desfrutá-lo em outro momento.  

Uma das entrevistas que me impactaram foi uma das últimas de Guimarães  Rosa – pouco antes de falecer – ao critico literário Günter Lorenz. Longa entrevista  onde discorrem sobre muitos assuntos ligados a arte de escrever, e de viver.  Guimarães praticamente reinventou nossa língua com suas falas do homem do  sertão, carregadas de significado mas grafadas de uma forma e sonoridade inéditas,  coloquial, quase uma nova língua. Diz Guimarães a certa altura desta entrevista  para Lorenz:  

Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los.  Acontece-me algo assim como vocês dizem em alemão: Mich reitet auf einmal der  Teitjel (às vezes o diabo me cavalga) que neste caso se chama precisamente  inspiração. Isto me acontece de forma tão conseqüente e inevitável, que às vezes  quase acredito que eu mesmo, João, sou um conto contado por mim mesmo.” E a entrevista transcorre por mais ou menos uma hora e meia onde abordam temas  importantes com bastante profundidade: 

“Um gênio é um homem que não sabe pensar com lógica, mas apenas com a  prudência. A lógica é a prudência convertida em ciência; por isso não serve para  nada. Deixa de lado componentes importantes, pois, quer se queira quer não, o  homem não é composto apenas de cérebro. Eu diria mesmo que, para a maioria  das pessoas, e não me excetuo, o cérebro tem pouca importância no decorrer da  vida. O contrário seria terrível: a vida ficaria limitada a uma única operação  matemática, que não necessitaria da aventura do desconhecido e inconsciente, nem  do irracional.” 

Das fibras do papel aos pixels, todo esse universo foi ampliado nos  proporcionando inúmeras opções para quem tem o prazer de ler. Ainda gosto do  cheiro e da textura do papel, do contraste das letras impressas mas viajo  tranquilamente nas telas, nos kindles da vida, procurando trechos e pedaços que  me enriqueçam e me tragam as sensações e o prazer de senti-las. 

Guto Corbett

É empresário

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