“À leitura deslizante ou horizontal, um simples patinar mental, é preciso substituir pela leitura vertical, a imersão no pequeno abismo que é cada palavra, fértil mergulho sem escafandro.”
José Ortega y Gasset
Sempre gostei de ler. Os livros me foram apresentados por parentes que gostavam e respeitavam muito todo tipo: romances, contos, técnicos, enciclopédias – que eram nossa busca de internet na época – e até dicionários. Lia pedaços de textos em jornais, revistas e nesta época tinham muitos jornais e muitas revistas. As bancas de revistas eram super coloridas, diversificadas, tinha muita opção para todo tipo de leitor. Eu colecionava histórias em quadrinho e ia muito nas bancas especializadas em revistas usadas, para venda, compra e troca. Trocava as revistinhas mensais de contos de suspense e de crime, a Ellery Queen que minha mãe adorava. Ia juntando aquele monte de revistinhas e depois eu ganhava, as mais antigas claro, para ir fazer trocas na banquinha de revistas usadas. Das HQ às enciclopédias no papel e aos pixels da internet
Aí vinha de tudo: Tarzan, Mandrake, Príncipe Valente, Flash Gordon, Fantasma, tinha Batman e Super Homem também e as da Disney, do Bolinha, Luluzinha, muita coisa. Algumas em preto e branco, outras coloridas. Na época as HQ nem eram muito respeitadas como boa leitura, mas me enriqueceram muito não só pelo texto mas também pelo desenho. Em casa tinham muitos livros, uma coleção do Monteiro Lobato, que além de estórias com seus personagens do Sítio do Pica-pau amarelo adaptou muita coisa, lendas, folclore e histórias do mundo. Tinha Robin Hood, Sherlock Holmes, Agatha Christie, Simenon, Arsène Lupin, histórias de antigas civilizações do Egito aos Maias.
Gostava mais de contos porque dava para ler mais rapidamente e entender toda a trama. Nos romances de mais páginas, eu tinha um problema, muitas vezes não conseguia ler o livro inteiro e já pulava para outras coisas. Muito tempo mais tarde, um amigo, Aércio Flávio Consolin, professor e escritor premiado, numa conversa onde comentei minha dificuldade de ler por inteiro um romance e por isso achar que não era um bom leitor – apesar de gostar muito – me disse que ler era isso mesmo, ter o prazer de ver textos, nem que fossem pequenos trechos e se deliciar com eles. Entender formas que autores utilizam para colocar idéias e sentimentos despertando sensações em quem lê. Isso de algum jeito me liberou e assim li muito mais e com mais prazer. Sem a obrigação que antes me prendia de ter que terminar tudo que começava. Antes eu me frustava quando não ia até o final. Depois desta conversa consegui ler trechos de muitos e muitos autores.
Pedaços que enriqueceram minha formação, enriqueceram minha imaginação. Lembro de um trecho de um romance dele, Fadário, que conta uma história verdadeira de sua família antes dele nascer, onde uma tia mata seu marido, seu tio, envenenando-o com arsênico por estar apaixonada por um jovem. A cena se passa num casarão velho, onde moravam numa cidadezinha do interior de São Paulo, que tinha um corredor escuro e longo que ligava cômodos da casa levando à sala principal. No meio deste corredor tinha uma clarabóia que projetava um facho da luz do sol e fazendo um retângulo iluminado no velho chão surrado de madeira.
Olhando este pedaço iluminado, muito tempo depois da morte dos personagens verdadeiros do romance, imaginando quanta gente, quanta história, tantas preocupações e prazeres que passaram por aquele pedacinho de chão em tantos anos, ele escreve: “…tão pouco chão para tanta história.” Parei neste trecho, e até hoje minha imaginação voa despertando lembranças e sensações imensas. Como se fizéssemos uma janelinha naquele pedacinho de chão por onde poderíamos olhar o tempo passando em flashes, vivenciando angústias, esperanças, amores, dores, prazeres, horrores, ódios e alegrias de gerações passadas e de alguma forma vivenciando as nossas, numa analogia inevitável. Entrevistas também sempre me atraíram. A chance de poder partilhar conversas com autores, artistas e pessoas interessantes e que de outra forma não poderíamos conhecer e compartilhar suas idéias. O poder de congelar no tempo um papo e poder desfrutá-lo em outro momento.
Uma das entrevistas que me impactaram foi uma das últimas de Guimarães Rosa – pouco antes de falecer – ao critico literário Günter Lorenz. Longa entrevista onde discorrem sobre muitos assuntos ligados a arte de escrever, e de viver. Guimarães praticamente reinventou nossa língua com suas falas do homem do sertão, carregadas de significado mas grafadas de uma forma e sonoridade inéditas, coloquial, quase uma nova língua. Diz Guimarães a certa altura desta entrevista para Lorenz:
“Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los. Acontece-me algo assim como vocês dizem em alemão: Mich reitet auf einmal der Teitjel (às vezes o diabo me cavalga) que neste caso se chama precisamente inspiração. Isto me acontece de forma tão conseqüente e inevitável, que às vezes quase acredito que eu mesmo, João, sou um conto contado por mim mesmo.” E a entrevista transcorre por mais ou menos uma hora e meia onde abordam temas importantes com bastante profundidade:
“Um gênio é um homem que não sabe pensar com lógica, mas apenas com a prudência. A lógica é a prudência convertida em ciência; por isso não serve para nada. Deixa de lado componentes importantes, pois, quer se queira quer não, o homem não é composto apenas de cérebro. Eu diria mesmo que, para a maioria das pessoas, e não me excetuo, o cérebro tem pouca importância no decorrer da vida. O contrário seria terrível: a vida ficaria limitada a uma única operação matemática, que não necessitaria da aventura do desconhecido e inconsciente, nem do irracional.”
Das fibras do papel aos pixels, todo esse universo foi ampliado nos proporcionando inúmeras opções para quem tem o prazer de ler. Ainda gosto do cheiro e da textura do papel, do contraste das letras impressas mas viajo tranquilamente nas telas, nos kindles da vida, procurando trechos e pedaços que me enriqueçam e me tragam as sensações e o prazer de senti-las.