Breno Rodrigo de Messias Leite*
A eleição de Javier Milei, líder da coalizão A Liberdade Avança, para a Presidência da República Argentina foi uma vitória sem paralelos na história daquele país. É a primeira vez que um outsider, criador de um partido minoritário e defensor da ideologia anarcocapitalista consegue ser eleito para a chefia de um país tão importante. Coerente à sua ideologia política, Milei prometeu, ao assumir a Presidência da República, reduzir o tamanho do Estado, iniciar um amplo programa de privatização, eliminar ministérios, substituir a moeda nacional pelo dólar (a dolarização da economia argentina) e abolir o Banco Central do país. No plano das relações internacionais, anunciou que será aliado do Ocidente – leia-se: EUA, União Europeia, Israel e Japão – e que se distanciará ou não manterá relações diplomáticas com países não-democráticos ou comunistas, como a China e o Brasil, os dois maiores parceiros comerciais da Argentina. O projeto de Milei, uma fez implementado, poderá modificar radicalmente as estruturas da política argentina.
É claro que entre a retórica eleitoral e a materialidade do mundo político há um profundo abismo. Como sabemos, as mudanças revolucionárias em regimes democráticos são cisnes-negros. Excepcionalidades tão raras que confesso ter sérias dificuldades de trazer à memória alguma experiência bem-sucedida. As mudanças radicais podem acontecer, é claro, mas não em ambientes substantivamente democratizados. Mudanças revolucionárias, sim, limpam o convés e reiniciam o sistema. Só revoluções apostam na nova ordem, isto é, na transformação profunda do esquema de poder vigente, do status quo. Embora se considere um anarquista de tipo liberal, não me parece ser um líder tão colérico quanto os anarquistas revolucionários do século XIX.
Uma vez eleito, Javier Milei terá diante de si, a partir do dia 10 de dezembro, quando tomará posse, os seguintes desafios: nenhum apoio em qualquer província argentina, exceto talvez em Córdova, segunda cidade mais populosa da Argentina e reduto anti-kirchnerista; sem maioria parlamentar na Câmara e no Senado num dos sistemas partidários mais fragmentados do mundo (fragmentação alta, entende-se: custo de governabilidade alto e instável); não possui apoio explícito de nenhuma ala das Forças Armadas; não há, até onde sabemos, apoio de nenhum grande órgão da mídia tradicional; nem é apoiado abertamente por nenhum grande chefe de Estado, exceto pelos ex-presidentes da República Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Aliás, a própria comparação com Bolsonaro, nesse caso, é totalmente equivocada. O partido do ex-presidente brasileiro, o PSL, elegeu a maior bancada da Câmara dos Deputados, patrocinou a eleição e reeleição dos Presidentes das duas casas do Congresso Nacional; recebeu apoio das Forças Armadas e de muitos governadores e prefeitos. As suas derrotas devem ser colocadas na conta de seu ímpeto, e não no presidencialismo de coalizão. Em outras palavras, a situação de Milei é bem mais adversa, arriscada e caótica se comparada a de Bolsonaro, em 2018. Mas, para quem prega o apostolado da anarquia, este pode ser o menor dos males.
O sistema presidencial, como bem descrito e estudado pela extensa literatura da Ciência Política, é possível graças a uma equilibrada aritmética institucional entre o Executivo e o Legislativo num sistema de separação de poderes. Dito de outro modo, o presidencialismo multipartidário é o repositório institucional dos múltiplos atores políticos do sistema político-partidário em um regime democrático.
Tal compreensão pragmática do fenômeno político não chega ao seu público-alvo: os eleitores. Estes veem a política presidencial como algo absolutamente pessoal, familiar, afetuoso. Nós, latino-americanos, sentimos a política – transpiramo-la – como uma paixão orgânica, sentimental, viva. E é neste momento, de total passionalidade e irracionalidade coletiva, que os candidatos percebem como poucos que são aprovados por aclamação popular. O processo eleitoral é inteiramente ritualizado; a eleição torna-se, assim, uma mera formalidade para um líder já legitimado pela comunidade de eleitores.
Os procedimentos da democracia presidencial, tal como percebida pelos eleitores, assumem uma natureza mágica e fantástica. Como na vanguarda literária latino-americana de García Márquez, Borges, Vargas Llosa, Cortázar e tantos outros, a fantasia precisa da realidade, assim como a realidade precisa ser fantasiada. O lúdico é absolutamente concreto na criação concreta do mundo mágico. O que é aparentemente confuso, ilógico e até irracional passa a ser correto, justo e aceitável para as multidões. A dialética realismo/mágico é uma experiência onírica com os olhos bem abertos.
O presidencialismo mágico triunfa por permitir que de tempos em tempos possamos ter a esperança por dias melhores. Tanto na esquerda como na direita, a aposta presidencial é eivada de rudimentos mágicos, de crença da liderança carismática única, excepcional, infalível. Este presidencialismo é o do mundo da vida, e não o do mundo do sistema, como na acepção habermasiana. De Perón a Milei e de Vargas e Lula, a reinvenção da ordem institucional segue o ritmo da reinvenção da ordem carismática e da crença no poder personalíssimo depositado na figura do Presidente da República.
*é cientista político