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Separando o joio do trigo

Em nome da segurança e do combate ao contrabando e à comercialização de cópias irregulares (ditas “piratas”), os países desenvolvidos estão tentando impingir uma inaceitável obrigação às aduanas das nações economicamente mais frágeis. Sob a chancela da OMA (Organização Mundial de Aduanas), o Primeiro Mundo pretende implantar internacionalmente o sistema denominado Secure, que confere às alfândegas o poder de retenção das mercadorias consideradas “suspeitas” de infração à propriedade intelectual. Esse processo está sendo conduzido de maneira rápida e eficiente, sem alarde para evitar reações adversas. O pretenso poder de polícia das alfândegas consta quase como um apêndice dos mecanismos prioritários do Secure voltados para o combate ao contrabando e à contrafação em marcas. Os agentes aduaneiros das nações desenvolvidas na OMA pretendem aprovar as novas regras em reunião a ser realizada em Genebra no final de outubro.
Esse dispositivo que os países desenvolvidos tentam impor ao mundo através da OMA pode causar grandes estragos ao comércio exterior brasileiro, inibindo especialmente as indústrias que importam princípios ativos e exportam medicamentos – produtos com elevado conteúdo tecnológico e cuja balança comercial atinge a casa dos 6,5 bilhões de dólares/ano. Isto porque a mera denúncia à autoridade alfandegária de que uma determinada mercadoria entrando ou saindo de nossas fronteiras estaria violando direitos de propriedade intelectual teria o poder de sustar o trâmite na aduana, ficando o importador ou exportador com a responsabilidade de provar judicialmente a falsidade da acusação.
Em qualquer parte do mundo, as aduanas são órgãos totalmente despreparados para analisar documentos de natureza extremamente complexa como os de patentes industriais. Mas no Brasil o problema seria mais grave, porque a lei nacional de patentes (nº. 9279/96), aprovada sob pressão dos EUA em 1996, absurdamente acolheu a inversão do ônus da prova. O parágrafo 2º do artigo 42 dessa lei estabelece como violação do direito de patente a situação de “o possuidor ou proprietário não comprovar, mediante determinação judicial específica, que o seu produto foi obtido por processo de fabricação diverso daquele protegido pela patente”. Isto significa que uma simples denúncia teria efetivamente o poder de interromper o recebimento de insumos pela cadeia produtiva pública e privada de medicamentos, com repercussões no atendimento à população, até que se conseguisse demonstrar ao nosso moroso poder Judiciário que “gato não é lebre”.
O setor farmacêutico, pela elevada lucratividade que propicia aos laboratórios internacionais, certamente constitui o alvo dessa iniciativa. Trata-se, inequivocamente, de uma retaliação indireta à adoção, pelo Brasil e por outros países emergentes, da licença compulsória como instrumento para garantir o acesso de suas populações a medicamentos essenciais. Por ser um grande importador de fármacos e medicamentos e, mais recentemente, também um promissor exportador nessa área, o Brasil será o país mais prejudicado se o Secure for aprovado como está.
Vale destacar que, pela legislação internacional vigente na área de propriedade intelectual, cabe ao detentor do direito a tarefa de proteger a sua propriedade intelectual (artigo 28 do Acordo TRIPS). O poder público somente atua nessa área em sua instância judicial, mediante processo movido pela empresa interessada. O que os países desenvolvidos tentam fazer agora, por meio do Secure, é colocar a fiscalização e a polícia doméstica de todos os demais países a seu serviço. Fica mais fácil e mais barato para eles.
Disponibilizar a estrutura fiscalizadora do Estado para essa tarefa constitui um uso indevido dos limitados recursos públicos. Não faz o menor sentido conceber uma ação policialesca e truculenta de nossas alfândegas para atender aos interesses do Primeiro Mundo. O combate ao contrabando e à contrafação verificáveis a olho nu, ou na forma documental, são necessários e importantes, mas não podemos permitir que, sob o eufemismo do “combate à pirataria”, seja impedida ou dificultada a produção local de medicamentos e, conseqüentemente, o acesso a eles pela população brasileira. Temos que separar o joio do trigo.

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
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