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A arte que adorna a saudade e o amor aos mortos

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Ostentar sempre foi um requisito de quem tem muitas posses. Na Manaus de fins do século 19 e início do 20 a ostentação chegava aos túmulos dos enriquecidos pelo comércio da borracha. Foi o que descobriu o pesquisador e acadêmico de história, Fábio Augusto, andando por entre os túmulos do cemitério São João Batista.

“Desde criança sempre me interessei por cemitérios, pois da minha casa dava para ver os túmulos do cemitério São Francisco, atualmente pertencente ao Morro da Liberdade, até que um dia fui vê-los de perto”, lembrou.

Adulto, Fábio foi conhecer os túmulos do cemitério mais antigo de Manaus, o São João Batista, inaugurado em 1891 e, cursando história, passou a pesquisar o passado daquelas seculares ‘últimas moradas’.

“Comecei este trabalho direcionando para os túmulos de personagens que ficaram para a história social e política da cidade, como Ária Ramos, Santa Etelvina, Delmo Pereira, Eduardo Ribeiro, Álvaro Maia, Adalberto Vale, entre muitos outros, e descobri que os anônimos escondem inúmeras curiosidades fantásticas”, contou.

Fábio verificou que a suntuosidade dos túmulos foi mudando de acordo com a sociedade.

“No entorno da capela estão os maiores, mais bonitos e mais ricos, feitos com mármore. Se afastando da capela surgem os menos abastados. Diferente dos cemitérios do Rio de Janeiro e São Paulo, onde predomina o ferro, aqui é o mármore que se sobressai, porque Manaus tinha duas marmorarias naquela época, mas ninguém trabalhando com metal, por isso cruzes, estatuetas e estátuas vinham da Europa”, destacou. 

Compras por catálogo

Escultura histórica no cemitério foi trabalhada em bronze na Itália

E verdadeiros artistas faziam os túmulos e peças do seu adorno.

“Recentemente descobri um túmulo de 1906, com uma pranteadora de bronze. Na base do vestido dela está a assinatura do autor, Raphael Schwartz, um francês de origem ucraniana. Vale lembrar que, naquela época, existiam catálogos disponibilizando estas peças. Era só pedir”, informou.

Numa quadra do cemitério estão arrumados 27 túmulos trazidos do cemitério São José, desativado em 1891, após a fundação do São João Batista.

“Todos são feitos com mármore de carrara, da Itália, e de liós, de Portugal, e num deles tem a assinatura da empresa que os fazia. Era a Oficina Germano José de Salles & Filhos, localizada em Lisboa. Devia ser uma ‘grana’ bem alta mandar fazer e depois trazer esse material da Europa, mas como a elite tinha dinheiro sobrando e queria mostrar isso, valia a pena”, revelou.

A partir de 1899 os túmulos e demais acessórios passaram a ser feitos em Manaus, com o surgimento da Marmoraria Ítalo Amazonense, do italiano Cesari Veronesi.

“Este italiano fazia o serviço completo, de uma simples campa até o mausoléu mais sofisticado que o solicitante desejasse”, afirmou.

“O túmulo de Ária Ramos, uma das personagens mais famosas do São João Batista, morta no Carnaval de 1915, com um tiro, foi feito por Cesari, e inaugurado um ano depois do enterro da jovem, junto com a estátua dela, de mármore, confeccionada pelo escultor Augusto Franzoni, na Itália”, disse.

Andando em meio a centenas de campas, túmulos e mausoléus, Fábio conseguiu eleger um destes que, na sua opinião, estaria entre os mais bonitos.

“Está na quadra 1 e nele foi enterrado o advogado Salustiano Cavalcanti, assassinado por questões políticas, em 1912. Chama a atenção porque possui quatro colunas ornamentadas com crânios e ossos cruzados em cada uma delas; acima do epitáfio, um anjo, encimado por uma pira com chama. São vários símbolos, mas destaco a pranteadora, em tamanho natural, inclusive com lágrimas nos olhos”, falou.

Um museu a céu aberto

O trabalho de Fábio Augusto não se resume a somente passear pelas ruas do cemitério em busca de curiosidades. Na internet ele vasculha documentos e jornais onde encontra a história das empresas e dos personagens citados. Sobre o assassinato do advogado Salustiano Cavalcanti, por exemplo, ele descobriu detalhes no Jornal do Commercio da época do ocorrido. Já a morte de Ária Ramos foi amplamente noticiada, também pelo JC.

“Aí você consegue notar que, com o passar das décadas, o rebuscamento e a ostentação vão dando lugar à praticidade e simplicidade. A partir, principalmente da década de 1960, somem estátuas e os túmulos passam a ter somente uma cobertura de mármore, ou nem isso. Os mausoléus praticamente somem”, contou.

Mais recentemente os cemitérios passaram a ter apenas uma mínima lembrança de quem ali está enterrado: uma plaquinha de metal com os dados do falecido sobre a cova, em campo gramado.

“Os cemitérios sempre foram um problema para as cidades, tanto que eram construídos o mais distante possível da área urbana, e esse problema é cada vez maior. Temos sete bilhões de pessoas, hoje, no mundo, aguardando a hora de ocupar um”, recordou.

“A solução seria cremar todo mundo, mas aí tem a questão religiosa, e esta é outra história”, concluiu.

Enquanto isso, vale uma visita ao São João Batista, um verdadeiro museu a céu aberto com belíssimas obras de arte e artistas quase desconhecidos.  

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
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