Breno Rodrigo de Messias Leite
As peculiaridades da formação da nacionalidade brasileira, iniciada no processo de Independência, em 1822, contam com um tipo de relacionamento errante, irregular e instável com os países circunvizinhos da América do Sul. A única monarquia, cercada por repúblicas, viu nascer, na região platina, as rivalidades históricas que por força da geografia provocariam necessariamente relações de paz ou de guerra nas relações internacionais.
Neste percurso constitutivo das nações latino-americanas, a via da guerra evidenciou-se como um imperativo momentâneo para a consolidação das fronteiras nacionais herdadas das antigas metrópoles ibéricas (Espanha e Portugal), isto é, das fronteiras coloniais que remontam ao Tratado de Tordesilhas, ainda no século XV. Nas ondas de Independências, inauguradas no século XIX, as formações dos Estados nacionais tentaram abolir o uso do uti possidetis, a fim de substituí-lo por limites de reconhecimento mútuo.
As guerras da Cisplatina, os conflitos domésticos do Uruguai envolvendo Brasil e Argentina, até a guerra da Tríplice Aliança travada pela coalizão Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai de Solano López, foram, de certo modo, conflitos armados por definição de fronteiras ou contenção de alguma modalidade de expansionismo como os de Juan Manuel Rosas, presidente da província de Buenos Aires, que pensou reerguer o Vice-Reinado do Rio da Prata; e Solano López, que invadiu o território brasileiro do Mato Grosso, em clara atitude de reivindicação das velhas possessões coloniais.
Mutatis mutandis, logo após a Guerra da Tríplice Aliança, em 1870, as armas foram substituídas pela diplomacia. Questões litigiosas entre as nações envolvendo fronteiras, comércio, indústrias, recursos naturais, etc., passaram a ser definidos por mecanismos políticos e diplomáticos convencionais. Desde então, o Brasil deixou de ser uma nação com ambições hegemônicas e conflitiva para dar lugar a uma postura mais conciliadora e amistosa na América Latina, especialmente no Cone Sul.
Já no começo do século XX, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, torna-se o mais importante estrategista brasileiro ao se tratar de fronteiras e diplomacia. No que diz respeito à América do Sul, o Barão possuía uma grande visão estratégica de longo prazo para a região. No seu entendimento, Argentina, Brasil e Chile – a potencial coalizão ABC – poderiam fazer uma aliança trilateral, a fim de impulsionar o desenvolvimento econômico e cooperativo de toda a região. Não se concebia, no pensamento do Barão, uma aliança militar com o propósito de subjugar os demais países da região, mas sim de fazer um contraponto aos Estados Unidos. Isolados, Argentina, Brasil e Chile seriam facilmente manipulados e controlados pelos interesses hemisféricos dos norte-americanos.
Nos Estados Unidos, o geopolítico Nicholas Spykman, formulador da teoria do Rimland, também pensou na possibilidade da coalizão ABC. A seu juízo, a coalizão ABC seria a maior ameaça aos EUA fora do continente europeu, pois representaria uma ameaça interna, no próprio continente americano. Nicholas Spykman é um realista em política internacional, por isso pensou que a melhor solução para se evitar a coalizão ABC seria o uso da força militar, isto é, os EUA iriam à guerra contra o ABC.
Ao longo de todos esses anos, a coalizão ABC – o sonho de Rio Branco e o pesadelo de Spykman – nunca se concretizou com clareza. Os modelos de integração regional atuais estão longe de ameaçarem a hegemonia norte-americana e a liderança brasileira na região. Brasil tornou-se, até o momento, um ator estratégico e aliado dos EUA na região. O sonho de Rio Branco e o pesadelo de Spykman minguaram, afastando, por enquanto, o peso do determinismo geográfico. Os países do ABC escolheram caminhos outros, em sintonia com os rumos da política internacional dos pós-Segunda Guerra.
*é cientista político e professor de política internacional do Diplô Manaus (curso preparatório para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, CACD). Email: [email protected]
[Manaus, AM, Jornal do Commercio, 29/06/2022]