Nelson Rodrigues era um oceano de sabedoria. Poucos dramaturgos entenderam tão bem a alma do brasileiro. Herdeiro da psicologia e das ironias de Machado de Assis, o Anjo Pornográfico, como era também conhecido, Nelson Rodrigues nos brindou com uma sofisticação literária composta por contos, crônica, teatro, jornalismo e criativa análise política.
Nelson Rodrigues foi um genuíno homem público e um polemista de primeira qualidade. Responsável por frases épicas, como “No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte”; “Sem paixão não dá nem pra chupar um picolé”; “Toda a unanimidade é burra”. O seu ceticismo era crônico.
Além das frases, Nelson tornou-se também um iconoclasta das palavras, um criador de termos e verbetes sem igual. São seus o “idiota da objetividade”, “o brasileiro é um canalha”, “o brasileiro é um feriado”, “toda unanimidade é burra” entre outras. Mas uma em especial sempre me chamou a atenção: o óbvio ululante.
No dicionário rodriguiano, o “óbvio ululante” significa tudo aquilo que é tautológico, autoexplicativo, evidente por si mesmo; é o lugar-comum sem inventividade, sem acrescentar nada de novo. Em suma, Nelson nos presenteia com uma imagem do óbvio ordinário, comum, pois só não ver quem não quer.
Sempre pensei na inteligência e astúcia deste termo, o que me faz pensar que a sua aplicação e adaptação para a estrutura da realidade, para o mundo político brasileiro, pode trazer novas luzes.
Seguindo as veredas iniciadas pela poética social de Nelson, podemos, sim, pensar num tipo de ação estratégica do lulismo no contexto político brasileiro. O que tenho chamado de o óbvio lulante é a conduta pública dominante na vida política nacional frequente e intensificada na última década pelo ex-presidente Lula.
Em outras palavras, o óbvio lulante é um jogo de linguagem de poder, onde se combina simetricamente a retórica do vitimismo com peças acusatórias alicerçadas na ideia de superioridade moral na esfera pública – o monopólio da virtude.
Uma característica determinante desse comportamento é a contradição ou paralaxe entre o que se fala e aquilo que se faz. Em meio ao maior escândalo de corrupção que o país já testemunhou, e que acabou se transformando em uma catarse coletiva, o ex-presidente é capaz de criticar “as elites” e exaltar os pobres, sendo que tudo o que se tem visto ao longo das investigações é a mais íntima trama entre políticos e empresários para fins criminosos. Nas palavras de Antônio Palocci, um “pacto de sangue” entre Lula e seu grupo e empresários num sofisticado e rentável esquema de monopólio da corrupção.
A grande inversão da realidade é falar em nome do povo, mas atuar com os capitalistas em um consórcio bem elaborado, com fins de perpetuação do poder e dos lucros. O uso dos bancos públicos, especialmente o BNDES, das estatais, como a Petrobras, entre outras. Em realidade, Lula, o grande chefe, organizou um duplo pacto de classes: um pacto com os multimilionários, proprietários dos principais oligopólios produtivos; e um pacto com as camadas subalterna, cuja lealdade dependia dos programas de transferência de renda. Este jogo, a classe média pagou a conta.
Poucas vezes na história do Brasil, possivelmente apenas no período do regime militar, presenciamos tamanha drenagem de recursos públicos. Se não fossem as denúncias e a coragem de certos agentes públicos, com destaque para a atuação do juiz federal Sergio Moro, talvez ainda estivéssemos surfando no mar da ignorância a respeito do Brasil profundo.
A inversão moral da realidade é uma característica constante no movimento revolucionário. O óbvio lulante é uma expressão folclórica dessa patologia política. A cultura política do país pode ficar mergulhada nesta fantasia ou sair fortalecida dessa trama. Tudo vai depender do comportamento dos eleitores-cidadãos e do funcionamento pleno das instituições políticas.