Circulou, nos últimos dias, nas mídias sociais, a notícia da decisão mais recente da Vara do Meio Ambiente (VEMAQA), de fazer cumprir sentença judiciária passada em julgado, por meio da ordem de retirada, com auxílio de força policial, das centenas de flutuantes irregulares do leito da foz do Tarumã, a fim de que comece um processo de reordenamento de usos por formulação do plano de bacia.
Para entender melhor a ordem judicial, é imprescindível conhecer o regime jurídico aplicável aos rios que atravessam Manaus e o seu contraste com a deficiência histórica da Administração Pública na execução da política pública de gestão de recursos hídricos.
Os rios integram o patrimônio público. Conforme a Constituição de 1988 (ver art. 20 e 26), as águas interiores, superficiais e subterrâneas, seus terrenos marginais e as ilhas fluviais são bens públicos (federais ou estaduais), que somente se pode usar mediante atendimento à disciplina especial de gerenciamento e controle do Estado. Os rios não são coisas de ninguém, que se pode usar, consumir, sujar, poluir e destruir, livre e impunemente.
É dessa forma porque as bacias hidrográficas são ecossistemas naturais que devem ser especialmente protegidos por prestarem relevantes serviços à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações. Assim deve ser ainda que estejam degradados e fortemente pressionados pelo crescimento desordenado da cidade, até porque dificilmente um igarapé se converte em bueiro com perda definitiva e irreversível de suas funções ambientais.
Segundo o regime da lei estadual 3167/2007, o Poder Público deve estar presente e atuante na Bacia do Tarumã-açu. A Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA) é o órgão gestor; o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) em articulação com a Polícia Militar é responsável pela fiscalização. O Comitê de Bacia é o colegiado que deve congregar em assembleia todos os usuários do rio. Adicionalmente, a lei faculta a criação de agência de águas para fortalecer o arranjo institucional, mas, no Amazonas, ainda não há nenhuma.
Em se tratando de rio federal (como p. ex. Rio Negro, Solimões, Amazonas, Madeira), a tutela administrativa passa a envolver a Secretaria do Patrimônio da União, o IBAMA, a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) e a Polícia Federal.
Além dessas unidades diretamente voltadas à gestão hidrográfica, devem exercer poder de polícia, nos igarapés e suas margens, os órgãos municipais de desenvolvimento da cidade (IMPLURB), de controle dos balneários e dos estabelecimentos comerciais (tais como a Vigilância Sanitária, a Guarda Municipal) assim como a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SEMMAS).
Não menos relevante é a atuação irrenunciável da Marinha (Capitania dos Portos), no sentido de exercer a segurança da navegação, a fiscalização das embarcações e o controle de lançamentos de poluentes ambientais por estas últimas, de acordo com o art. 3º da Lei 9537/1997.
Ainda há a previsão de mais agentes públicos nesse plexo estatal em havendo unidades de conservação da natureza (UC) no perímetro da bacia. No caso do Tarumã-açu, devem atuar, paralelamente, os gestores da APA Rio Negro Margem Esquerda, da APA Tarumã-Ponta Negra, da APA Parque Ponta Negra, da APA Parque do Gigante, da RPPN Reserva Águas do Gigante e da RPPN Sócrates Bonfim.
A despeito da multiplicidade de agências públicas, é notório que a fiscalização e a gestão são falhas e não inibiram os episódios de ocupações informais e irregulares, motivo por que ao Ministério Público coube acionar o Poder Judiciário para tutelar o bem ambiental ameaçado.
O que a decisão judicial destaca é a inexistência, até hoje, do instrumento básico, conforme a lei, de organização de bacia: não existe plano de gestão de bacia para o Tarumã. Tal plano é o pressuposto legal de expedição das licenças e termos de outorga de uso, pois deve alinhar as diretrizes para condicionantes e salvaguardas de sustentabilidade socioambiental a exigir de cada empreendimento. É o plano de bacia que prescreve o zoneamento e modalidades de usos sustentáveis na região assim como as limitações de usuários, atividades e lançamentos de resíduos e esgotos a bem da preservação ambiental.
Enfim, a lei precisa ser tirada do papel e o trabalho dos órgãos, robustecido no Tarumã. Não apenas pela necessidade de ordenar a exploração comercial de flutuantes. Trata-se de território extremamente vulnerável à poluição e a vários ilícitos tais como o lançamento de resíduos e de esgoto sem tratamento (responsabilidade do município), a extração ilegal de areia e madeira, drogas, queimadas, grilagem, desmatamento ilegal, abertura de ramais clandestinos, lixões, opressão a comunidades tradicionais e conflitos fundiários, edificações insustentáveis, explorações comerciais irregulares, caça e pesca abusivas etc.
Ruy Marcelo *Mestre em Direito Ambiental, professor e Procurador de Contas