27 de julho de 2024
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Uma estratégia à francesa

O saber convencional da análise política, por muitas décadas, negligenciou intencionalmente ou não o papel dos militares na definição dos rumos da política nacional. Os otimistas viam a consolidação da democracia como uma evidência em si, que submetida ao teste do tempo e referendada pela qualidade das instituições, seguiria o seu curso normal de institucionalização. Os pessimistas, por sua vez, nunca viram tal euforia com bons olhos e sempre disseram, com certa razão, que as nossas instituições democráticas, para além das suas fragilidades endógenas, não funcionam satisfatoriamente.

Não é tarefa fácil definirmos categórica e definitivamente a atmosfera política brasileira. Mesmo mergulhados na torrente da conjuntura, muitas vezes cegos pelo poder dos acontecimentos, do imediatismo das manchetes e dos trending topics, ainda é possível identificarmos os fundamentos políticos e estratégicos do governo Bolsonaro. Efetivamente, a rationale bolsonarista é influenciada por diferentes perspectivas e múltiplas referências ideológicas. Do populismo autárquico ao neoliberalismo, do neoconservadorismo ao americanismo naïve, da alt-right ao templarismo virtual etc. Há de tudo e tudo é possível na esfera de influência do bolsonarismo.

Porém, pensando em termos de forças profundas, uma influência que me parece fundamental e que nunca é mencionada pelos analistas políticos é a da Doutrina Francesa. A assim chamada Doutrina Militar Francesa é, por definição, uma doutrina militar adaptada aos conflitos assimétricos do pós-Segunda Guerra Mundial. Diferente da Doutrina da Segurança Nacional, criada nos EUA e aplicada nos contextos de guerra convencional – em essência, contra as ameaças externa da URSS e dos países comunistas –, a Doutrina Francesa nasce das experiências concretas do império ultramarino francês no domínio de seus territórios em várias partes do mundo, sobretudo na Ásia (Indochina) e Argélia (África).

A característica central da Doutrina Francesa é a luta contra a guerra revolucionária (guerre révolutionnaire) na qual o conflito entre meios militares e não-militares perde qualquer sentido. Em certo acepção, ainda de acordo com a Doutrina Francesa, haveria uma combinação deliberada entre política, ideologia e questões militares. No quadro geral do colapso da civilização ocidental, a doutrina oferece um remédio amargo: a unificação das autoridades civis e militares – ou a substituição da primeira pela segunda. Em poucas palavras, a liberalidade da democracia poderia favorecer, em última instância, o crescimento de grupos beligerantes, subversivos e insurrecionais no núcleo das sociedades democráticas.

Os militares brasileiros forjados nos princípios da Escola Superior de Guerra (ESG) e que hoje fazem parte do círculo íntimo do bolsonarismo sofreram profunda influência da Doutrina Francesa. E este certamente um dos principais elementos do atual esquema de poder, pois o forte anticomunismo, a operacionalização da guerra psicológica, a transformação do adversário político em inimigo militar, e a unificação da estratégia política-militar, entre outros, são aspectos constitutivos da Doutrina Francesa. O intercâmbio militarização da política e a politização do meio militar adicionou um ingrediente inédito na fórmula poliárquica brasileira: a inserção definitiva dos militares na política numa atmosfera de democracia.

Não cabe mais a discussão sobre se devemos ou não termos militares na política; o debate agora, a saber, é sobre qual será o papel dos militares na política de hoje e de amanhã. A outrora relação de equidistância dos militares em relação à política dos civis ficou para trás. A formação do Partido Militar, bem como do Partido STF, fizeram com que o tradicional esquema de interação entre o Executivo e o Legislativo ganhasse uma nova coloração. E se, de um lado, as esquerdas em geral contam com o apoio do STF no ativismo judicial, por outro, o presidente da República conta com a adesão da caserna à sua causa. Eis o trágico equilíbrio de Nash das nossas instituições.

O alerta de Shakespeare no Ato III, cena IV, de Hamlet, ainda nos é bem familiar: “Ele aí vem; repreendei-o asperamente;/mostrai que se excedeu nas brincadeiras,/e como se interpôs Vossa Grandeza/entre ele e a grande cólera. Mais nada;/somente vos reitero: sede ríspida.”

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