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Reconstrução (03)

Bosco Jackmonth*

O livro que estampa a sequência de artigos postos nesta estação de escritos semanais é o que compondo a literatura regional que melhormente flagra a crispação daquele período, não só em narrações alegóricas, a rigor pesadelos denunciadores, como se poderá ver, tanto quanto na mensão criadora de personagens adeptos da ditadura, como, aliás, caso exemplar disso é Conegundes, protagonista da narrativa última, onde o quadro de oposição entre ditadura de direita e revolução de esquerda é, politicamente, o background da obra, digamos assim.

Busca-se ali, socialmente, buscar e conseguir desenhar o provincianismo de uma cidade dentre as suas tradições folclóricas, em que os contos sobre bois-bumbás exigem destaque, já em vias de desaparecerem, e a monotonia de repartições públicas, com suas mesquinharias liliputidianas, que a vem a ser pequenez ou falta de grandeza. Sucede, visto que escrito e publicado naquela quadra bem difícil da vida brasileira e amazonense, Mundo mundo vasto mundo não guarda espaço para a esperança sequer. Na verdade sua natureza anônima por certo não encontrará similar em nossas letras.                             

Nesta altura, cabe dizer da obra que na sua primeira edição compunha-se de doze contos, seguindo-se agora acrescida de duas novas narrativas, que são “Pio oficio ou a estranha velha que enforcava cachorros” e “A homenagem” em absoluto coerentes com o projeto inicial, tal porque o primeiro se inscreve naqueles modelos opressivos e já o segundo nos exercícios  de descrição da indignidade rasteira de seres minúsculos, autocomplacentes e infantis diante do poder.

Quanto à Temática, deve-se dividir o livro em cinco grandes grupos, assim:

os folclóricos: “Bumbá e “Rebolo”,

os pesadelos: “Preto e Branco”, “Presságios”, “Reconstrução”, “Pio ofício ou a estranha velha que enforcava cachorros”,

os sociais: “Vó Hermengarda”, “Rosa de carne”, 

os que tratam da incomunicabilidade entre os seres: “Assunto perdido”, “Madalena”, “Flor de cacto” e 

os que descrevem a vida provinciana: “Antes da nomenclatura”, “Figa, pé de pato, bangalô três vezes… e “A homenagem.” 

Resta claro que, acima da diversidade temática, encontra-se um narrador irônico que acaba conferindo unidades completas a esses relatos. Viceja o estilo moderno, com frases ágeis e curtas, o vocábulo que, em oposição ao precioso, mostra-se preciso, não deixando de ser rico, o fraseado a um tempo clássico e atual, tudo enfim leva para a unidade desse marco na contística amazonense. 

A seguir temos a Linguagem. Sucede, não fora renomado professor de língua portuguesa, nosso autor tem estilo próprio, sem dúvida. Assim, em nossas letras o que parece essencial ao escritor, quase chega à exceção. As marcas machadianas já se lhes referiram: frases tensas, tom irônico, a observação desmistificadora, o jogo com os diversos sentidos das palavras … Mas aqui seu estilo, forçosamente contemporâneo, se baseia em vocabulário distinto do machadiano, em fraseado mais ágil e na própria montagem das cenas muito mais coerentes, sem as interrupções e volteios do chamado Bruxo do Cosme Velho.

De vez em quando, tanto o narrador quanto os diversos personagens demonstram preocupações com a linguagem. Assim é que em “Vó Hermengarda”: Felipe, meu nome: amigo do cavalo. Entretanto, não me lembro de jamais ter tido afeição por equinos, não pertenço a nenhuma sociedade hípica, não sei sequer cavalgar … Enfim, me perdoo por nunca ter respeitado esse compromisso etimológico.                                                                                              

Consta em “Figa, pé de pato, bangalô três vezes…” que depois de proferir uma frase comum, o personagem reflete: Entrada vulgaríssima, bem sei. Mas enfim quem indaga por minha graça e se diz minha criada, não creio fosse necessário linguagem mais requintada e original

Segue, alguns personagens como Conegundes do último conto, têm fixação pela forma escorreita, pelo uso vernacular, pela fobia aos estrangeirismos linguísticos, algo cuja raiz deve estar no próprio autor. Daí, de vez em quando, também apontam jogos vocabulares, como no sentido diferenciado entre singular e plural da palavra: “Dançar na casa de doutores, autoridades, gente de haver, de bens mais que de bem”. Enfim, o despojamento desse livro, avesso não só ao sentimentalismo gritante, ao regionalismo convencional mas também ao ornamentalismo vazio de muitos prosadores, une-se à precisão e ao asseio vocabular e frasal, demonstrando que sua linguagem foi elaborada e ocupa um lugar central, ao lado dos valores culturais e sociais de que trata.

Agora, voltemo-nos para a questão do humor. Carlos Gomes é um humorista, no que de mais elevado significa esse termo. Humorista como o foram Jonathan Swift e Bernard Shaw, limitando-nos a dois irlandeses de alto conceito. Assim, embora revele algo de britânico (no jogo entre palavras puns), o humor do nosso indicado parece provir do dito espirituoso e do fraseado vernacular de Machado de Assis, ele também um como que britânico cultivador do sense of humor – eis sua influência mor.

Nos contos sobre as ninharias morais e a tola presunção dos personagens provincianos, o humor se mostra já no tom do narrador. Tudo se apresenta devidamente examinado na lente dessublimadora e sarcástica daquele que narra os casos hilariantes e exemplares.

Mas não raro, o autor engasta uma frase machadiana mesmo nos lábios de suas criaturas. Um exemplo: Filipe se lembra de que, ao dar um jeito no pé, Vó Hermengarda o curou apenas costurando um pano que representava seu pé arruinado. A avó pede que vá buscar uma agulha virgem e ele: “Trouxe a agulha, virgem como ela recomendou pelo menos a supunha como tal, mas quem me garante hoje que ela já não conhecesse alfinete?   

O gosto de descobrir a pequenez dos homúnculos insuflado pelo orgulho tolo nos leva a rir, mas também a desprezar essa vaidade provinciana que, ao que parece, não reflui nem mesmo quando a metrópole se sobrepõe á vila pachorrenta.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Em seguida vamos aos contos, para dizer que as duas narrativas que tratam diretamente do folclore e, mais especificamente, do boi-bumbá abrem o livro. “Rebolo” é nostálgico, documenta as inquietações infantis diante das pequenas humilhações: ser pego por Pai Francisco e ter as nádegas usadas como amolador da faca do negro Chico. O narrador se mostra absolutamente permeável e sensível àquela emoção da infância, por isso, temos um conto tocante e emocionante. Contudo “Bumbá” constitui a melhor realização do tema. A partir da oposição entre dois grupos folclóricos, o narrador institui uma rede de símbolos que contagia o leitor. Os índios, o padre, o dono do boi, de repente, se tornam figuras simbólicas em luta mortal. Trágico é o destino de Severino, criador do boi Estrela. Seu sacrifício contém dor (pahtos) e emoção pura à qual o leitor não consegue se mostrar insensível. É com essa maestria a que ao final nos submete  o nosso consagrados autor.  

Sucede, aqui foram classificados como “pesadelos” aqueles contos que efetivamente são narrados numa perspectiva onírica. Às vezes, os personagens acordam, outros vezes não. Em todos eles, temos um personagem central submetido a angústias e opressões que tanto podem ser tomadas como resultado de uma situação individual quanto de um tempo e uma sociedade opressiva e opressora. (Conclusão).

É advogado há 57 anos (OAB/AM 436). Ex.func. BEA e Bco. Brasil no Rio, comis. Fiscal Cambial, p/atuar junto ags.operadoras em moeda estrangeiras, face Zona Franca.  Cursou Direito, Com.Social (Jornalismo), Contabilidade, Cor.Imóveis, Oratória, Taquigrafia, Inglês. Lec.Hist.Geral e outros. [email protected]

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