26 de julho de 2024
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Os filhos adotivos

Dizem que nascemos e vivemos sempre nos locais certos, com as pessoas certas e com tudo o de que precisamos exatamente na quantidade e qualidade de que precisamos. Nossa família é um exemplo típico disso. Ali estão os nossos grandes desafios. Os grandes aprendizados começam ali e quase sempre é ali que eles também finalizam. Algumas vezes, infelizmente, também é no seio familiar que algumas inimizades de longo tempo se reencontram e se mantêm até além-túmulo, enquanto outras se transformam em maravilhosas experiências de amizade.

A mesma coisa acontece com o local onde se nasce. O local de nascimento é sempre aquele espaço perfeito para que possamos começar a nossa trajetória na vestimenta de carne. Recebemos o carinho que estruturará o nosso comportamento e o caráter ou a injusta repulsa daqueles casos em que o recém-nascido é abandonado. Felizmente, na maioria dos casos, os pais de verdadeiro amor logo aparecem e os tomam nas mãos, para que edifiquem ali as fortalezas do divino amor. E logo aquele recém-chegado é festejado e se torna conhecido naquele ambiente, deixando sua marca e fazendo ali a sua história.

Dizem também, e isso parece ser uma verdade formidável, que há os irmãos de nascimento, que são aqueles que não escolhemos, e os de amor, que são aqueles poucos que são escolhidos. Evidentemente que são os pais que escolhem nossos irmãos civilmente constituídos, ou emprestados, como nos casos das adoções amazônicas, em que a lei dos homens é deixada de lado e praticada a lei divina do amor efetivo. 

Mas todos nós escolhemos os nossos amigos. A amizade é outra forma de dizer irmão. Todos temos muitos amigos, que são aqueles que se preocupam e sofrem conosco nas nossas adversidades, assim como os que se alegram e festejam conosco nas nossas vitórias. E eles estão sempre em todos os lugares por onde passamos e fixamos nossas raízes, ainda que temporariamente. Esses locais são nossos locais, não de nascimento, mas de renascimento. Toda cidade adotiva é uma forma de família adotiva. E, como família, cuida de seus membros com muito amor. Manaus é assim.

Eliandro é descendente indígena. Nasceu na distante e bela São Gabriel da Cachoeira. Chegou sozinho no porto da Manaus Moderna não faz um mês. Veio construir aqui o seu futuro. No seu semblante, uma visão mais aguçada percebia claramente que ele parecia estar retornando de uma viagem longa, daquelas que fazemos quando vamos estudar em outras localidades. Apesar do indígena ter nascido em São Gabriel, é óbvio que ele sempre foi manauara, como ele mesmo disse: “sempre me senti daqui”.

Júlio Alexandre já tem exatos 56 anos de Manaus. Veio em busca de emprego nos primeiros momentos do polo industrial de Manaus. “Eu amei a cidade assim que vi ela”, disse o industriário recém-aposentado. Foi amor à primeira vista porque, de fato, aquele senhor franzino sempre foi daqui, sua mente sempre esteve aqui e seu espírito já passeava por Manaus durante seus sonhos. “Quando todos falavam de Manaus, tinha uma coisa dentro de mim que me dizia que eu vinha para cá”, explica. Assim como Eliandro, Júlio apenas voltou para casa.

Mas o caso da família Péres, assim mesmo, com acento. Todos os oito membros vieram ao mesmo tempo. Alguns já com descendentes, outros aqui constituíram família. Manaus abrigou a todos e a todos cuidou com muito carinho. Como aquela mãe carinhosa, deu a eles tudo o que o local de seu nascimento não lhes pôde dar. E hoje, com incríveis 62 membros, a família Péres ajuda a capital amazonense a ficar mais bela, plantando flores por entre as calçadas e espaços públicos disponíveis nos bairros onde moram.

Certa vez conheci uma família manauense morando no Sul. Fazia algumas décadas que não visitavam nossa capital. As lembranças do que aqui viveram vinham sempre acompanhadas de lágrimas saudosas. Às vezes se tinha a impressão de que eram dores que escorriam pelos olhos daqueles manauaras distantes. Seus sonhos eram simples e singelos: poder enterrar seus corpos no solo da capital; se possível, no romântico e festivo bairro de Educandos. Os filhos, todos nascidos nas plagas sulistas, sequer se imaginavam caminhando pelas ruas abafadas e calorentas da cidade.

Manaus é assim. É coração aberto para toda alma sedenta de carinho e de oportunidades. É como se fosse um pequeno paraíso, onde as pessoas não costumam olhar nos olhos da gente porque veem as coisas com o coração. É uma família cujos membros dificilmente consegue dizer um não diante de qualquer pedido honesto e necessário, ainda que tenha dificuldade de cumpri-lo. É uma habitação com ambiente para todos, ainda que tenha que comprimi-los em pequenos espaços para a construção de suas moradias, cada vez menores e mais abafadas.

Com mais de dois milhões de habitantes, a maioria provavelmente é constituída de filhos adotivos ou filhos de filhos adotivos. Uns poucos, como é natural, abandonam a casa paterna por vontade ou necessidade, o que a deixa entristecida. Mas essa tristeza logo é recompensada com os novos filhos adotivos que escolhem as sombras de suas árvores para armar as redes de suas vidas, nas quais haverão de se embalar para sempre.

Com o coração hospitaleiro e amoroso de toda mãe, os filhos de sangue adotam os novos irmãos com muita dedicação. E, juntos, trilham de forma solidária o caminho do autodesenvolvimento e autoconhecimento, com suas adversidades e iluminações. Sempre sob o olhar carinhoso e amoroso que toda mãe tem, onde não existe diferença entre filho de sangue e filho de coração. Feliz aniversário, amada Manaus, minha cidade do coração, ainda que por um pequeno período de filiação.

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