26 de julho de 2024
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O ônus do bônus (parte 5)

Continuemos a coleta do diário que Flora nos confiou, mas em boa parte com relato em viva voz. Assim, cumprindo-se a maldição reservada à esposa, esta, em certa ocasião que o marido mais uma vez como ultimamente não chegaria para o jantar, já dando mostras de que iria varar a noite apesar das promessas em contrário, decidiu que a primorosa ceia que preparara com especial esmero, desta feita não dormitaria na geladeira, nem ela, a patroa, a degustaria sozinha, tanto que já se posicionara para finalmente “dar o troco” ao infiel de há muito. Esperasse para ver!

Vivia um conflito existencial surgido de forma traiçoeira. Já tinha notícia dos hábitos em curso, objeto do preâmbulo deste texto. Mas com um nome a zelar, faltava-lhe encontrar o parceiro conveniente, que não despertasse suspeita. Deveria ser tão rasteiro que jamais alguém acreditaria na hipótese de um “caso”.

Perto se encontrava de materializar-se a maldição. Novamente indo ao portão, esperançosa de ver o esposo retornar ao lar, voltava dali revoltada quando se deparou do outro lado da rua, com a figura do sentinela esmoler de sonhos impossíveis, mais uma vez deitando olhares de admiração como de costume, àquela que se mostrava mal amada, segundo o disse-me-disse que circulava na vizinhança.

Então, perturbada, “sem pensar duas vezes” (que lugar-comum!) e não se dando conta e que sucumbia ao Mal, num incontido impulso decidiu convidar o guarda a jantar, tendo o coitado quase “morrido de susto”.

Certamente não sabia a senhora que a encomenda macabra sepultada no terreno da residência já começara a se manifestar, há meses, e agora ardia em brasa, irradiando força sobrenatural ao meio, alcançando então no momento o atrevido sonhador, alçado à condição de logropata, eis que era quem se encontrava mais à mão. Servia para cumprir-se a maldição, segundo estava praguejado, é de se acreditar.

Cabe mais uma vez consultar o festejado diário, dando-se ênfase ao que consta no quarto parágrafo, sem dispensa dos demais. Assim: “Sobrou-me o pior. A maldição que nos atiraram implicava a que eu do meu lado traísse meus próprios princípios éticos e morais. Foi-se minha autoestima. Portanto, não tive a mesma sorte do meu companheiro amaldiçoado.” “Sucumbi, por um tempo, a uma inacreditável irracionalidade como se meu corpo e minha alma se separassem de vez em quando, tal como nos pesadelos. Num certo momento de extrema perturbação cheguei a sair de casa, a pé, com roupa caseira, e andei pelas ruas do bairro, sem rumo, findando por parar diante das portas fechadas de uma capela que me fora indicada por uma bondosa senhora que me encontrou num banco de praça, chorando copiosamente, e muito me aconselhou. Vi-me depois em casa, sem me lembrar desse retorno. Não era dona de mim, tudo poderia me acontecer de ruim.”

Continuou. Não me sentia eu mesma, mas algo, para não dizer alguém, invasora das sombras que em certo ritual a que posteriormente fui submetida teve designação, mas que busco esquecer. Revelações estarrecedores nos foram feitas, a nós, casal, com prescrições de banhos esotéricos e por fim no mar, onde, sofrida, lavei meu corpo e minha alma, deixando ali toda a repugnância que então me atormentava. Uma verdadeira catarse. Para tanto viajamos ao interior do Pará, pois ali é que teria sido feito o “despacho”, apurou-se. Valia a pena tentar-se de tudo.     

 Mas voltemos ao ponto do convite ao ágape, relatando que a sala de jantar refletia a claridade do majestoso lustre de cristal pendente do teto. O chicôso banquete preparado a caráter, assim se apresentava:

*Entrada. Green Hortaliçado posto com nozes, regado a azeite de safra limitada.

*Prato Principal. “Faisão ao Champignon”, com purê de amêndoas, suavizado no molho de ervas orientais, com leve aroma de canela da Índia.   

*Sobremesa. “Petit Gateau”, “Creme de Brulê” e “Ganache Com Nozes e Morango”.

*Bebidas. Vinho Branco da Borgonha, safra “Puligny Montrarachet”. Licor de Menta, escocês.

Serviço. Toalha e guardanapos com detalhes de renda do artesanato da Ilha da Madeira. Louça alva, com suaves matizes azul-celestes, legítima porcelana da Dinastia Ming. Copos e taças, para vinho, de cristal“Bacarat”. Talheres de prata “San Michel”.

Relutante, a estranha figura convidada entrou, olhos arregalados, incrédulo ao se deparar com o luxuoso ambiente que sequer sabia se poderia existir. Sem mais demora, o comensal, mesmo não se sentando, e ainda mudo, tratou de avançar em direção às iguarias.

Seu prato preferido sempre fora jaraqui frito. Mas, estrábico pela emoção, já saboreando (no adjetivo) o quanto teria a relatar à patota, indagou-se: será que vão acreditar? De todo o modo, subtraiu um jogo de talheres de prata e escondeu-o num bolso, para servir de prova e também gerar uns trocados, ora…

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