26 de julho de 2024
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O discurso de Lula na Assembleia Geral da ONU

Breno Rodrigo de Messias Leite*

O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da 78ª. Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), no último dia 19 de setembro, foi o cartão de visita de seu terceiro mandato presidencial. Se em anos anteriores, a visão de Lula tinha como ponto de referência os desafios da globalização, o problema do terrorismo, as guerras no Oriente Médio, a abertura de mercados, a formação de blocos regionais e o boom econômico das commodities brasileiras, agora o chefe de Estado tem diante de si um desafio sistêmico muito mais complexo e disruptivo. A globalização liberal está sendo desafiada a luz do dia pelo Sul Global e pelo bloco russo-chinês, o terrorismo foi substituído pela guerra convencional de atrito, o eixo do conflito geopolítico foi arrastado do Oriente Médio para o coração da Europa, o protecionismo encurralou os mercados e os blocos econômicos foram substituídos pela lógica da segurança coletiva. O otimismo da ordem internacional liberal foi, em pouco mais duas décadas, trocado pelo pessimismo atávico do realismo. A pergunta que fica é: qual será a posição do Brasil diante de tanta incerteza na política internacional?

O cientista político Robert Jervis, em sua obra Perception and Misperception in International Politics (obra, infelizmente, nunca traduzida para a língua portuguesa), inaugura a concepção cognitiva e psicológica nas Relações Internacionais. A sua tese é bem simples de se entender: atores internacionais são orientados por percepções equivocadas acerca da ação ou intenção de outros atores. Por este motivo, os atores estratégicos veem somente aquilo que querem ver. Os atores estratégicos – insiste Jervis – são orientados por crenças (sistemas fechados). E, a partir daí, os mesmos atores estratégicos ordenam o seu pensamento desejoso (wishful thinking). Em outras palavras, a política internacional não é uma realidade em si. Política internacional é tão somente uma percepção limitada da realidade. As coisas são o que são e, por este motivo, não é possível mudar, do dia para a noite, a percepção enraizada, o sistema de crenças e as condutas dos atores políticos, tampouco das militâncias inebriada que os sustentam com voz, voto e algoritmos.

O discurso inaugural de Lula na Assembleia Geral deve ser entendido à luz desta explicação teórica. Afinal, o presidente, como todo político, direciona o seu discurso para as suas bases eleitorais e para os seus aliados nas mais diferentes posições dentro e fora do país. Assim, o discurso do presidente na Assembleia Geral da ONU está alicerçado fundamentalmente em quatro eixos-temáticos.

  1. Desigualdade global. Talvez este seja o tema mais importante na agenda da política externa de Lula. A sua crítica terceiro-mundista à ordem internacional leva em consideração os níveis de desigualdade e as hierarquias do sistema internacional que reforçam e reproduzem tais mecanismos. Ao afirmar que o “mundo está cada vez mais desigual”, Lula aponta para os problemas ambientais, o aumento da fome e a falta de acesso à saúde pública em vários países, principalmente, os mais pobres.
  2. Democracia e retomada da política externa. Ao enfatizar a “vitória da democracia em meu país”, Lula direciona a sua crítica para a oposição interna, sobretudo à oposição bolsonarista. Tenta demonstrar que o país estava à beira de uma ruptura da ordem democrática – o que me parece um exagero retórica e de percepção – e que a sua volta ao poder debelara este processo. Diante disso, dadas as garantias da manutenção do regime democrático, destacou a reinserção do país: “o Brasil está de volta.” E continua: “nosso país está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais.” Na sua avaliação, portanto, os principais problemas da comunidade internacional são: pandemia da Covid-19, crise climática, insegurança alimentar, questões energéticas, racismo, intolerância e xenofobia. Todos estes problemas são potencializados pelas desigualdades e tensões geopolíticas mundo afora. A crise global pode, ainda segundo Lula, comprometer a Agenda 2030 da ONU.
  3. Protagonismo do Brasil na agenda ambiental. A defesa de uma agenda ambiental proativa visa reverter a série histórica de críticas das principais potências ao Brasil. Ao se colocar como parte propositiva, Lula retoma a temática das mudanças climáticas e da crise ambiental sob a ótica do conflito de interesse entre os países ricos e os emergentes ou em desenvolvimento. A posição do Brasil é clara a este respeito: as responsabilidades são diferenciadas, à medida que as nações desenvolvidas não podem frear as vias de desenvolvimento das emergentes. Além das questões climáticas, a diplomacia de Lula apontou para mais duas questões centrais: a transição energética e a agenda amazônica. Nos dois casos, o Brasil, já neste primeiro ano, deu alguns passos decisivos, como o Plano de Transformação Ecológica e os investimentos nas fontes de energia limpa (solar, eólica, biomassa, etanol e biodiesel). 
  4. Crise do multilateralismo e da governança global. O discurso do presidente direciona algumas críticas contundentes ao status quo global, sobretudo ao sistema erigido no pós-Segunda Guerra: “quando instituições [internacionais] reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução.” É neste contexto que Lula endossa a emergência de projetos alternativos, como o BRICS. Insiste o presidente: “a ampliação recente do grupo na Cúpula de Johanesburgo fortalece a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21.” A ascensão da ordem multipolar ocorre no momento de paralisia dos organismos que deveriam racionalizar o processo decisório, como no caso da Organização Mundial do Comércio (OMC). Além do mais, o presidente chamou a atenção para a crise humanitária que hoje afeta a vida de muitas nações. A menção à Guerra na Ucrânia foi tímida e prolixa: “a guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU.

O posicionamento da política externa de Lula verbalizado na abertura da 78ª. Assembleia Geral da ONU tenta colocar o Brasil como uma liderança do Sul Global. Lula reintera a ideologia terceiro-mundista – o primeiro dos últimos – e desafia o status quo global, sobretudo as potências europeias e os EUA. O discurso presidencial em nada surpreendeu ou inovou. Apenas reinterou as suas ideias sobre a posição subordinada do Brasil e a necessidade de reposicioná-lo num cenário de mudanças sistêmicas ainda incertas. 

*é cientista político

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