Esta pergunta – se Brasil já poder ser considerada uma ditadura – não é meramente retórica. É a tradução de um estado de consciência de parte da população, do eleitorado, de militantes à esquerda e à direita, e de todos aqueles que não acreditam mais nas formas convencionais de se fazer política nas democracias. Não é de hoje que a democracia deixou de ser um valor político predominante nas crenças cívicas dos cidadãos.
E tal fenômeno não atinge só o Brasil. Os países latino-americanos, em geral, são bem céticos quanto ao experimento democrático. Dados da pesquisa do Latinobarômetro de 2018 mostram que 48% dos cidadãos da América Latina apoiam o regime democrático. Já os indiferentes, isto é, cidadãos politicamente não engajados com os princípios democráticos, são 28% dos entrevistados. Por fim, o autoritarismo é apoiado por 15% dos entrevistados.
A pesquisa vai além e mostra outros índices. Surpreendentemente, 75% dos venezuelanos se consideram apoiadores da democracia (é sempre bom lembrar que a Venezuela passa por um crescente processo de desmonte das instituições democráticas desde 1999, quando o coronel Hugo Chávez, depois de eleito, assumiu o poder). No Brasil, por sua vez, a preferência pela democracia é de apenas 34%, ao passo que a situação tem alguma melhora na Argentina (59%) e no Uruguai (61%).
A satisfação com a democracia é irrisória no Brasil. Só 9% dos entrevistados brasileiros estão plenamente satisfeitos. As origens da massiva insatisfação com o regime democrático estão diretamente ligadas a nossa errática vida política. Tradicionalmente, como numa corda bamba, o país caminha ora para experimentos liberalizantes (descentralização), ora para momentos autoritários (centralização). General Golbery do Couto e Silva identificou neste processo como a sístole e a diástole da história do Brasil.
A insatisfação com a democracia pode produzir um erro de percepção grave: pensar que as instituições políticas não estão funcionando mais. E por não funcionarem mais – pensam os alarmistas de plantão – não produziriam resultados positivos. Logo, o Brasil estaria à beira de um colapso institucional.
Este erro de percepção misturado com a dimensão afetiva da política ajuda a produzir narrativas mirabolantes para todos os lados. À esquerda, tem-se a percepção que o golpe já foi dado e que os militares não respeitarão as regras do jogo eleitoral. À direita, há uma certa simpatia por um tipo de solução final restauradora na qual a intervenção militar seria inevitável e necessária para a restauração da lei e da ordem. À esquerda, se pensa que o presidente é um terrível líder fascista. À direita, que o presidente é o líder supremo e como tal pode exercer o seu poder moderador.
Constantemente se improvisa um espantalho sofístico que reforça a coesão do grupo contra ou a favor do presidente, mas que dificilmente consegue explicar a estrutura da realidade. Pensar que o Brasil não vive mais numa democracia ou mesmo que teremos uma em alguns instantes é abandonar a razão para se começar a jogar para a galera. É substituir a meditação pirrônica pelo populismo argumentativo.
A não compreensão da natureza do nosso sistema político, em geral, produz percepções equivocadas sobre o funcionamento das instituições e do regime democrático. Nunca se deve deixar de lado o fato de termos constitucionalmente um regime de poder dividido e um sofisticado sistema de checks and balances. Executivo, Legislativo e Judiciário travam disputas e competem entre si em incontáveis jogos repetidos de cooperação e conflito. O desenho institucional brasileiro é claro e daí a necessidade constante dos atores políticos se esforçarem na construção de arenas de diálogo e cooperação, pois do contrário será a bellum omnium contra omnes na terrível formulação hobbesiana.
Os erros dos atores institucionais não podem ser confundidos com paralisia decisória, colapso políticos ou ditadura. Os erros serão constantes e precisam contar com mecanismos de controle e punição já previstos pelo legislador. Embora não seja desejada, a tensão do conflito político é uma constante nas democracias. Gostemos ou não, democracias são vibrantes e conflitivas, já as ditaduras…