Breno Rodrigo de Messias Leite*
Há 101 anos, Espanã Invertebrada era publicada por José Ortega y Gasset. O ensaio orteguiano, um ato inaugural do seu perspectivismo, é considerado até hoje um clássico no quesito análise das condições psicossociais, da vida mental da nação, do zeitgeist da hispanidade.
O escopo do exame de Ortega y Gasset ultrapassa os limites da ordinária crise política espanhola marcada, por um lado, pelo colapso do antigo regime monárquico e, por outro, pelo início da Guerra Civil, a antessala da Segunda Guerra Mundial que se originou no coração da Europa. Para além da crise política, a España do filósofo de Madrid parecia estar envolta nas névoas da anomia, da lassidão moral, da sedição autonomista, étnica, paroquial. Em outras palavras, a Espanha do siglo de oro estava agora prestes a embarcar definitivamente no seu mais terrível momento histórico.
A crise espanhola tinha uma origem: o fim do seu Império. Uma vez derrotado pelos norte-americanos e alijado de suas principais colônias, o Império Espanhol já não poderia mais manter a sua opulência, o seu orgulho, a sua vontade de potência. Diz Ortega y Gasset, “o processo de incorporação da monarquia espanhola consistia em uma tarefa de totalização: grupos sociais que eram todos apartados se viram integrados como partes de um todo. A desintegração é o fenômeno inverso: as partes do todo começam a viver como todos apartados. A este fenômeno da vida histórica chamo particularismo e se alguém me perguntar qual é a característica mais profunda e mais grave da atualidade espanhola, eu responderia com essa palavra”.
O fim de uma ordem produz uma desordem para num estágio seguinte forjar uma nova ordem. O grande império ultramarino apequenou-se, tornou-se gelatinoso e particularista. E segue a meditação orteguiana: “A essência do particularismo é que cada grupo deixa de sentir-se a si mesmo como parte e em consequência deixa de compartilhar os sentimentos dos demais. Não lhe importam as esperanças ou as necessidades dos outros e não se solidarizará com eles para auxiliá-los em seus anseios. Como a moléstia que acaso sofre o vizinho não afeta por transmissão empática aos demais núcleos nacionais, este fica abandonado à sua desventura e debilidade. Por outro lado, é característico deste estado social a hipersensibilidade para os próprios males. Irritações e dificuldades que em tempos de coesão são facilmente suportados, parecem intoleráveis quando a alma do grupo se desintegrou da convivência nacional”. Assim, Ortega y Gasset encerra seu arrazoado: “a vida social espanhola oferece em nossos dias um extremado exemplo deste atroz particularismo. Hoje a Espanha é, mais do que uma nação, uma série de compartimentos estanques.
A Espanha de ontem tem sido nos seus devidos termos o Brasil de hoje. Não que tenhamos tido alguma vez a fortuna espiritual e material de uma España do Siglo de Oro, das grandes navegações, das conquistas militares e da espiritualidade católica. Longe disso. Mas, tampouco, nossa história pode ser compreendida como um apêndice ou um capítulo inconcluso da história mundial. O Brasil tem, sim, seu valor e sua grandeza. Um território continental, uma população gigantesca, uma natureza sem igual, uma história de luta pelas liberdades. Apesar de tudo, temos hoje uma dinâmica nacional peculiar, que merece um pouco de nossa atenção. E é certo que assim como a Espanha tornou-se invertebrada, o Brasil tem do mesmo modo perdido as suas vértebras.
As eleições de 2022 podem significar o mais rigoroso teste institucional de nossa história desde a retomada da ordem democrática. Tudo, absolutamente tudo, faz com que tenhamos um período de profunda turbulência no regime político. O próximo governo, o da direita ou o da esquerda, enfrentará um ou outro fortemente articulado nas ruas e no parlamento. Para além do jogo político, o STF, originalmente um ator burocrático, passou a atuar como um ator partidário, isto é, com interesses próprios, particulares, e dificilmente irão recuar de seu projeto total –também chamado de “poder moderador”. Os grupos identitários irão crescer cada dia mais, sobretudo nas redes sociais e nos núcleos acadêmicos. A imprensa mandará às favas a imparcialidade e o escrúpulo da boa prática do jornalismo, pois agora terão como fim a obtenção de likes e clickbaits.
O predomínio do particularismo sobre a nacionalidade, da fofoca sobre o interesse público, pavimenta as veredas da crise que nos aguarda para os próximos dias.
O ideal de um povo é, nas palavras de Ernest Renan, “ter glórias comuns no passado, uma vontade comum no presente; ter feito grandes coisas juntos, querer fazer outras mais: eis aí as condições essenciais para ser um povo… No passado, uma herança de glórias e remorsos; no porvir, um mesmo programa a realizar… A existência de uma nação é um plebiscito cotidiano”.
E antes que digam: – você está sendo pessimista. Eu retruco: a diferença entre um pessimista e um realista é que o segundo é um pessimista bem informado.
*é cientista político e professor de política internacional do Diplô Manaus.
[JCAM, Manaus, AM, 28/09/2022]