8 de outubro de 2024

Arnóbio Alves Bezerra

Iniciar uma caminha acadêmica nunca foi uma tarefa fácil. Uma mistura de medo, insegurança e incerteza marcam os primeiros passos de todos os jovens neófitos no universo acadêmico. O medo de errar, de falar bobagem e ser repreendido pelo mestre; a insegurança acadêmica oriunda de uma formação intelectual precária; e a incerteza quanto à escolha e o futuro da profissional – afinal, escolhi o curso certo? Vou conseguir ganhar dinheiro com isso? Pensando bem, onde fui me meter…

Os tormentos que afligem todos os jovens também me atingiram em cheio. Passei por tudo isso e os anos iniciais de minha formação acadêmica foram marcados por este turbilhão de problemas e dúvidas.

Apesar de tudo, nunca passou pela minha cabeça desistir, jogar tudo para o alto e mudar a escolha inicial. Deixar aquilo de lado e fazer outra coisa, como muitos fizeram, era impensável para mim. Mesmo com todas as dificuldades, eu sei que fiz a coisa certa; fiz o que o coração mandou e agora seja o que Deus quiser.

A escolha sobre o que fazer na vida é dominantemente individual e intransferível. É, sobretudo, uma escolha derivada da consciência moral, cujas implicações se estenderão por toda a vida. Todavia, não podemos perder de vista uma coisa: a certeza da escolha advém da admiração que nutrimos por outras pessoas. Todo aquele que um dia enveredou nos meandros da vida intelectual já teve a verdadeira experiência do amor socrático.

A minha errante trajetória na ciência política seguiu quase a risca este rito de passagem. Em um curso multidisciplinar, como o de ciências sociais, pude, inicialmente, criar uma expectativa positiva, pois sociologia, antropologia e ciência política, em tese, teriam o mesmo peso ao longo da formação.

Logo percebi que as coisas não funcionavam bem assim e que o propalado tripé estava manco. De fato, a ciência política era a prima-pobre da família. Aliás, diga-se de passagem: uma prima-pobre que, em alguns casos, também era indesejada na família.

À época, a ciência política terminava no quarto período – ou seja, na metade do curso – num total de três ou quatro disciplinas. Além do déficit na oferta de disciplinas de ciência política, a UFAM não dava – e ainda não dá – perspectivas para uma formação continuada e especializada na pós-graduação. Trocando em miúdos: estrangulava-se qualquer estímulo para uma formação profissional continuada na área da ciência política, o que forçava os alunos, naturalmente, a migrarem para as outras duas áreas.

Quando conheci o professor Arnóbio, ele era praticamente o único professor de ciência política do curso. Foi meu professor logo no primeiro período quando ministrou a disciplina ciência política. Para mim, as aulas de Arnóbio eram interessantíssimas, pois ele conseguia transitar entre fatos corriqueiros da política e as mais longínquas teoria sobre o poder; conseguia, enfim, falar de Lula e Platão numa mesma frase.

A despeito de sua anarquia didática, Arnóbio nos seduzia com a sua inteligência imagética combinada a uma extensa bagagem literária e uma pedagogia heterodoxa. Não, ele não fazia questão de pegar no pé dos alunos e tampouco cobrava toneladas de atividades escolares. Era um homem da sala de aula e lá era seu metiê.

As aulas de teoria política clássica, hoje, reduzidas a meia dúzia de cursos de graduação, eram um deleite para quem gosta de filosofia. Numa viagem de 2500 anos de história do pensamento político, de Aristóteles a Marx, de Hobbes a Tocqueville, de Mill a Arendt, o professor fazia muitos comentários sobre a contribuição de cada um para a política; da teoria mais abjeta ao jardim das delícias, nada escapava de sua navalha crítica e ironia cética. Falo por experiência: ministrar uma aula de teoria política é uma atuação no palco da história que vem do passado até o presente – e não necessariamente nesta ordem!

Também tive a oportunidade de estudar política brasileira. Ao longo de um semestre letivo inteiro foi possível entender um pouco das engrenagens das instituições políticas Brasil. Revisitamos o Brasil Império e a instauração da República. Estudamos os mais diferentes fenômenos: democracia, populismo, clientelismo, regime militar e por aí vai.

Mas a minha experiência mais proveitosa com o prof. Arnóbio foi na iniciação científica. Naquela altura, já decidido a seguir a minha carreira acadêmica na ciência política, lhe propus um projeto de pesquisa sobre a política local com ênfase na formação das coligações eleitorais. Ele aceitou de pronto, com muita alegria, e a partir daí iniciamos uma parceria que iria se estender até a minha monografia.

Graças ao professor, deixei de ser um jovem radical para tornar-me um cético quanto ao poder; o deslumbre com o marxismo deu lugar para as leituras caras à ciência política. Arnóbio foi o responsável por me introduzir ao mundo de Schumpeter e Dahl, Przerworki e Olson, Mosca e Michels; institucionalismo, escolha racional, escolha pública, teoria dos jogos; sistemas de governo, eleitorais, jurídicos, partidários e políticas públicas etc. Assim, confesso que tive o privilégio de ampliar o meu horizonte de consciência graças às orientações de Arnóbio. Dali em diante, nunca mais voltaria a ver o fenômeno político da mesma maneira.

Distanciei-me do professor Arnóbio nos últimos anos. Agenda de trabalho e a correria do dia-a-dia acabaram por adiar, por tantas vezes, um novo encontro para um bate-papo e um café.

Arnóbio Alves Bezerra foi mais um amigo que teve a sua vida ceifada por esta peste chinesa. A vida é uma caminhada perigosa; cheia de mentiras e desilusões. Muitas vezes, as quadraturas da vida são tão desconfortáveis que Deus, na sua infinita misericórdia, nos presenteia com alguma esperança e coloca pessoas especiais em nossas vidas. O professor Arnóbio Alves Bezerra certamente me deixou um importante legado e lições que levarei para o resto da minha vida.

Breno Rodrigo

É cientista político e professor de política internacional do diplô MANAUS. E-mail: [email protected]

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