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Zona Leste de Manaus desponta como protagonista

Ai daqueles que ficam com os rótulos e desprezam a energia que emana das pessoas e da natureza. Eles jamais seriam capazes de ler a periferia além da página dois, atolados no estigma da violência e do abandono. Felizes daqueles que abrem janelas e aproveitam a vista mais privilegiada da cidade ao espetáculo do encontro dos rios Negro e Solimões. Renovados os que testemunham a esmola e o isolamento transformarem-se em autoestima e acolhimento. Impressionados ficam os observadores da força comunitária no esporte e na busca por mais qualidade de vida. Isso sem mencionar a gratidão de encontrar no intenso comércio novos conceitos de produtos antes pouco cogitados neste local. Seja bem-vindo. Essa é a zona Leste de Manaus.

Da mesma forma que não há mais espaço para rótulos, não há margem para ilusão. Os moradores dos onze bairros que ocupam o lado mais à direita de Manaus no mapa enfrentam problemas, sim. Muitos deles históricos, relacionados à pobreza, falta ou baixa qualidade dos serviços públicos como segurança -principalmente -, transporte, saúde e educação. Em alguns locais mais, outros menos. Em níveis semelhantes ou incomparáveis às outras zonas. Uma complexidade brasileira, nortista, mas essencialmente manauara.

A diferença, hoje, talvez esteja na forma de lidar com os desafios. Como nascentes preservadas de rios poluídos, os cidadãos da zona Leste estão cada vez mais cientes dos seus direitos. E mais importante: estão corrigindo uma rota histórica de desassistência e desesperança. O novo sentido aponta para o protagonismo no desenvolvimento dos seus lugares e destinos. Purificar um rio não é fácil, mas o processo está em curso.

Quem estiver cético que explique as duas medalhas de bronze nas Paralimpíadas do Rio e de Tóquio de Laiana Rodrigues, paratleta do vôlei que despertou a paixão pelo esporte na Praça do Armando Mendes. Ou o status de embaixadora da empresa Kamaleão Color no Amazonas, conquistada por Carolina Dias, 28, do Tancredo Neves, que começou apostando na revenda de uma caixa de produtos de pigmentação para cabelo, adquirida por cartão de crédito, até se tornar referência no Estado em vendas da marca. No São José, um bloco de rua virou escola de samba seis vezes campeã: a Grande Família. 

Maduros e obstinados, todos que ficaram se tornaram sobreviventes após o terrível impacto da segunda onda de casos da Covid-19, em janeiro e fevereiro de 2021, onde quadras ficaram vazias, trabalhos foram interrompidos e o samba, silenciado. No extremo leste, moradores do Mauazinho, Colônia Antônio Aleixo e Puraquequara acumularam prejuízos com a cheia recorde do rio Negro, em junho. Perdas, sequelas, traumas e prejuízos incalculáveis a quem já buscava melhor qualidade de vida.

Às vésperas do aniversário de 352 anos, porém, a cidade assiste à redução de casos do novo coronavírus e a gradativa retomada da rotina pré-pandemia, que anunciam um horizonte de esperança. Velhos inimigos como a inflação e a redução no poder de compra são os desafios da vez para os quase 600 mil habitantes da região, segundo o IBGE. O que não impediu o surgimento de novos empreendimentos. Na luta cotidiana, a zona Leste tem história. Ou melhor, histórias. Centenas de milhares delas.

O campeão brasileiro

Prodígio da luta olímpica, Maik é campeão brasileiro – Foto: Divulgação

Quais as chances de um menino de 13 anos, morador do Jorge Teixeira, filho de um pedreiro e uma manicure, se tornar campeão brasileiro da sua categoria e garantir vaga no campeonato sulamericano com sede em outro país? A façanha pode surpreender muitos, mas não quem conhece Maik Souza, o esforço dos pais em manter o atleta competitivo e o suporte comunitário oferecido por escola, projeto social, amigos e admiradores do jovem.

Prodígio da luta olímpica, Maik é tetracampeão amazonense de jiu-jitsu. Estuda de manhã, treina pela tarde e pela noite, de segunda a sexta. Está em franca preparação para o Panamericano de Wrestling Sub-15, no México, onde tem a chance de alcançar índice para pleitear a maior meta: o bolsa atleta do governo federal. Mas o diferencial não está apenas no empenho do lutador. “Eu faço tudo por ele. Damos todo o suporte. Nossa casa é simples. Não tem reforma para isso”, revela o pai Antônio dos Santos.

“Eu trabalho de pedreiro. Mas é assim. É pouco o que a gente ganha. A mãe dele também se vira, faz manicure. A gente faz bingo, rifa para fazer o possível para ele ir mais longe. E graças a Deus eu fui teimoso”, celebra Antônio, que não está sozinho na rede de apoio. No projeto Jesus no Tatame, Maik, a mãe e o irmão mais novo treinam juntos com colegas do bairro, em iniciativa viabilizada por parceiros comerciantes e membros da Igreja Evangélica Geração Eleita, no Jorge Teixeira.

Na escola, um desconto de R$ 500 na mensalidade só foi possível graças aos resultados no Wrestling. Uma forma de reconhecer e valorizar o atleta e incentivar os estudos, mesmo conciliando com a intensa rotina de treinos. “É com muito sufoco. Às vezes, a gente não tem o dinheiro da passagem pro treino, mas pede emprestado, faz o possível, faz o sacrifício. Mas ele é estudioso e estamos na batalha até hoje. Ele é um moleque muito esforçado”.

Manaus tem a sua ativista 

elina  Pinagé é representante do Amazonas na COP 26, que ocorrerá na cidade de Glasgow, na Escócia, entre 1º e 12 de novembro – Foto: Celina Pinagé

A curiosidade e a indignação da estudante de ciências biológicas, Celina Pinagé, 22, transformaram-na em uma das mais importantes vozes do Brasil pela defesa do meio ambiente e, consequentemente, no debate sobre as mudanças climáticas. Quando viu do bairro onde mora e estuda, o Coroado, a cidade de Manaus tomada por fumaça em agosto de 2019, descobriu que algo estava muito errado. 

Ao identificar que aquele fenômeno era consequência do período recorde de focos de queimadas na Amazônia, ela estudou o tema profundamente, indignou-se e promoveu uma manifestação pelo meio ambiente, no centro da cidade. Aquele foi o primeiro passo para Celina ser reconhecida como ativista ambiental de escala global, o que lhe credenciou uma vaga como representante do Amazonas na COP-26 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), que ocorrerá na cidade de Glasgow, na Escócia, entre 1º e 12 de novembro.

Uma conquista que não aconteceu por acaso. A estudante tem uma profunda compreensão da questão ambiental, sensivelmente atrelada com demandas sociais. “A pauta ambiental, sozinha, não é nada. Sozinha, ela nem vale a pena ser tocada. Ela caminha junto com a pauta social. Pra gente conseguir preservar o meio ambiente, a gente precisa de educação. Precisa que as crianças estejam tendo saneamento básico. Como vou preservar uma árvore se não tenho comida em casa?”, ponderou.

Acadêmica do oitavo período na Ufam, ela valoriza o contato com a natureza proporcionado pelo bairro. “A gente tem muitas crianças crescendo em zonas periféricas e é importante ensinar o que é o desenvolvimento ambiental. Sinto falta desse incentivo à questão ambiental no Amazonas. É importante levar esses conhecimentos acadêmicos, mas também ancestrais”.

A turma do professor Jorginho

Professor de educação física, Jorge Silva recebeu um pedido de ajuda em 2016. A missão era ministrar uma rotina de atividades físicas para um amigo com sérios problemas de obesidade. A partir de então, todas as manhãs eram de caminhadas no acessível terreno da casa do profissional, no Jorge Teixeira. A rotina chamou a atenção de vizinhos interessados na prática, que aos poucos se juntaram aos dois. Atualmente, são 198 pessoas beneficiadas pela atividade funcional, oferecida gratuitamente pelo agora mais conhecido como Professor Jorginho.

Antes de reunir pessoas em busca por melhor qualidade de vida, o terreno onde Jorge atua já foi espaço de consumo de drogas. O local pertence a um amigo, que ofereceu a moradia com a condição da manutenção. A mudança não poderia ser melhor. “De manhã, oferecia a atividade a idosos e à tarde tinha futebol com jovens que ficavam ociosos por ali. De um espaço de brincadeira, ficou voltado para a saúde”, destacou.

Após a segunda onda da pandemia em Manaus, Jorginho viu aumentar a procura pelo funcional, mas viveu um dilema e acabou optando por limitar o espaço. “Não posso praticar saúde colocando a saúde das pessoas em risco. Temos uma fila de espera de aproximadamente 80 pessoas, que toda semana mandam mensagem para saber se abriu vaga”.

Jorginho destaca que a alta procura faz com que o projeto não careça de divulgação na mídia ou em redes sociais. Ele sobrevive com pequenas doações de integrantes e políticos. “Foi crescendo pela divulgação dos próprios alunos”, ressalta. 

Foto/Destaque: Divulgação
Reportagem de Bruno Tadeu

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
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