19 de setembro de 2024

Vai e vem das águas do Negro

Evaldo Ferreira: @evaldo.am

O sobe e desce das águas do Negro em frente a Manaus, tornou-se um espetáculo a parte desde 1953 quando a cheia atingiu até então impensáveis 29m69. Aquela cheia marcou tanto a população de Manaus que, durante décadas, quem a presenciou não a esquecia a cada ano, quando as águas subiam. Mas, por que aquela cheia marcou tanto?

Assim como a frente da cidade ficou alagada, fenômeno que o manauara nunca vira, os municípios do Estado também tiveram alagações e centenas, talvez milhares de ribeirinhos, sofreram as consequências e, não vendo outra solução para não passarem fome devido à perda das plantações e escassez do pescado, literalmente fugiram para Manaus causando um êxodo rural como só voltaria a ser visto a partir da década de 1980, com as hordas de invasores na zona leste da cidade.

Desse êxodo resultaram as invasões desordenadas de vários igarapés do Centro da cidade e a ampliação da Cidade Flutuante. Esta, teve suas casas desmontadas ainda em 1967, enquanto os igarapés só começaram a ficar livres das centenas de casebres a partir da década de 2000, com o início das obras do Prosamim (Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus).

E o que tem a ver o vai e vem das águas do Negro com o Porto de Manaus? Foi a partir do início da construção deste, em 1902, que se iniciou a medição do nível das águas. Antigamente, quando o roadway, ou ‘rodo’, assim os barés chamavam o porto, e o visitavam para ver a chegada e partida das embarcações, nos finais de semana, chamavam a atenção as pontes flutuantes, obra inglesa e orgulho dos manauaras, e a tabela onde ficava marcado o limite da água num determinado ano, isso, desde 1902, muito antes da inauguração completa do porto, que só aconteceria por volta de 1919.

Por que medir?

Assim como os engenheiros ingleses se preocuparam com a variação anual do Negro construindo um porto flutuante, também se interessaram por medir essa variação, não se sabe por que, já que desde o dia 15 de setembro de 1902 a medição diária teve início, com uma régua fixada numa pilastra, e as obras do porto só iniciariam quase um mês depois, em 7 de outubro de 1902. O que se sabe é que nunca se passou um único dia em que essa leitura não fosse feita, ao menos é o que está documentado em dois livros pertencentes ao acervo do porto. Tal leitura é, até hoje, divulgada diariamente no site do porto.

Para se ter ideia de como essa medição ganhou importância, um personagem conquistou destaque, inclusive nacionalmente, por realizar esse serviço: o borbense Valderino Pereira.

Valderino começou a trabalhar no porto em 1967, carregando cargas. Logo foi contratado por Aristide Leite, então administrador do local, para atuar como serviços gerais. Uma das suas responsabilidades era tirar ferrugem das boias que ficavam no rio. Com o passar dos anos Valderino foi evoluindo até chegar a supervisor chefe do setor de manutenção.

Em 2000 Valderino foi eleito o Portuário Padrão do Brasil, pela Associação Brasileira de Entidades Portuárias, e ainda recebeu a medalha Ruy Araújo, a maior honraria concedida pela Assembleia Legislativa do Amazonas.

Naquele ano, Valderino já se tornara a figura responsável, e respeitável, por medir e informar diariamente as variações do rio, além de liderar cerca de 40 colaboradores que atuavam na manutenção da área portuária.

O perigo da vazante   

Hoje Valderino está com 75 anos, aposentado, e exatamente o sentido que ele mais usou durante as décadas que trabalhou no porto para visualizar a marca da água na régua de medição, a visão está com problemas, mas o ex-funcionário não esquece o tempo em que realizava o serviço.

“Media sempre às 6h, quando as águas estão mais calmas. Isso diariamente. Antes de mim, já faziam aquilo, e agora, continuam a fazer, do mesmo jeito, na mesma régua. Não sei por que só eu ganhei fama”, disse. 

Há 15 anos, mesmo sem Valderino, os manauaras começaram a voltar sua atenção para as cheias e vazantes do Negro. Em 2009, depois de 56 anos, a enchente de 1953 finalmente foi batida quando o Negro, no dia 1º de julho daquele ano, atingiu a marca de 29m77. Mais inusitado ainda foi quando apenas três anos depois, em 29 de maio de 2012 o Negro chegou a 29m97. Na época, especialistas disseram que grandes cheias e vazantes sempre ocorreram, mas nunca tão fortes e em espaços tão curtos de tempo. Passaram-se nove anos e eis que em 16 de junho de 2021 o rio Negro chega a 30m02, recorde comemorado com muita gente indo até o ‘rodo’ fotografar a marca na tabela que nunca recebera tanta água, quase ultrapassando seus letreiros.

O que era festa, porém, apenas dois anos depois se tornou um pesadelo quando no dia 26 de outubro do ano passado, dois dias depois do aniversário de Manaus, a vazante chegou a níveis nunca vistos nos últimos 120 anos quando a lâmina do Negro, na tabela, ficou em apenas 12m70. E as previsões para esse ano são piores, de acordo com o Serviço Geológico do Brasil.    

Agora é torcer para que as chuvas caiam com intensidade, nos Andes, a partir de outubro, pois são elas que definem a cheia e a vazante do Negro, em Manaus. Que a medição na régua, no porto, não bata um novo recorde e o vai e vem das águas tragam apenas alegrias para os manauaras.

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Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio

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