4 de outubro de 2024

“Pretendeu limpar o cristianismo”

No próximo dia 8 de junho, sábado, a Academia Amazonense de Letras abre suas portas para o lançamento do livro ‘Elogio da loucura’, de Erasmo de Roterdã, traduzido do latim pelo professor da Ufam, Antônio Guimarães Pinto, um dos maiores latinistas em atuação no Brasil. Nessa entrevista, ao Jornal do Commercio, Antônio Guimarães fala sobre quem foi Erasmo de Roterdã e sua importância para a teologia e a filosofia.

Jornal do Commercio: Qual a importância de se ler o livro ‘Elogio da loucura’, de 1511, nos dias de hoje?

Antônio Guimarães: A verdadeira arte não tem idade e, quando se trata de uma obra literária com caráter satírico, em que o alvo são os defeitos, cacoetes e ridículos do ser humano, também parece razoável falar da intemporalidade, uma vez que o homem, como animal racional, desde que dele temos conhecimento histórico, apresenta basicamente os mesmos defeitos e virtudes, ainda que revestidos de trajes diferentes.

JC: Qual o legado, na teologia e na filosofia, deixados por Erasmo de Roterdã?

AG: O legado desse religioso/teólogo/filósofo foi muito grande. Citando alguns, as suas obras durante séculos mais conhecidas têm a ver com a pedagogia, e o conhecimento das línguas e cultura clássicas. Fez uma monumental compilação de provérbios e frases sentenciosas, onde, não apenas explica o sentido daqueles ditados e frases extraídos de autores gregos e latinos, mas aproveita para desenvolver, às vezes em longos ensaios, as suas concepções sobre o homem, a sociedade e a religião. No domínio religioso, deve salientar-se que fez uma tradução para o latim dos Evangelhos (cujos originais estão em grego), a que procurou dar um caráter científico, fazendo a coleção crítica de diferentes versões e manuscritos.

JC: O conteúdo de ‘Elogio da loucura’ tem tudo a ver com que estamos vivendo atualmente, no Brasil e no mundo?

AG: ‘Elogio da loucura’ tem tudo a ver com as situações em que os seres humanos se acham envolvidos em qualquer época em que se deixam dominar pelas suas piores tendências, quando desprezam ou não atendem à sua componente espiritual e racional, e são regidos pela sua parte animal, ou seja: egoísmo, vaidade, ambição desenfreada, hipocrisia, desprezo pelo próximo, desconhecimento de si mesmo.

JC: Sempre faltou, e sempre faltará ‘irenismo’, no mundo?

AG: É uma questão à qual não posso responder em relação ao futuro. No que tange ao presente e passado, infelizmente a mensagem irênica de Erasmo tem dado poucos frutos. Ao defender a paz (eirenê ou “irene” em grego) e o diálogo como método para a resolução dos conflitos, Erasmo segue o exemplo de Cristo, que obviamente os ‘cristãos’ do seu tempo se negavam a seguir. Mesmo grandes teólogos do seu tempo o criticaram por essa defesa da paz. A sua posição é um pouco a de um profeta de uma causa perdida. Escreveu dois textos, que constituem o catecismo do pacifismo, tal como hoje o entendemos:  ‘A guerra’ e ‘Queixa da paz’, que eu traduzi e foram publicados, em 1999, pelas Edições 70. Os grandes pacifistas, que surgiram no século XX, no fundo repetiram os argumentos de Erasmo. Infelizmente, como a experiência nos tem mostrado, com o mesmo resultado nulo.  

JC: O Sr. é especialista em traduzir textos do latim. Desde quando dominou essa língua?

AG: A minha relação com o latim começou no ensino médio, pois no meu tempo os alunos destinados a letras tinham nos dois últimos anos de Ginásio ou Liceu a disciplina de latim, e, no meu caso, também grego. Na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, optei pela licenciatura em Filologia Clássica, na qual as matérias eram ligadas com as línguas, culturas e literaturas grega e latina. Fiz depois mestrado e doutorado na área do latim, além de vários pós-doutorados, e há quase 30 anos que me consagro à tradução e estudo de autores que escreveram em latim. Sem, em Portugal e Brasil, a pessoa que traduziu o maior número de páginas daquela língua, indevidamente chamada morta, sempre com a preocupação de escolher obras que nunca antes tinham sido traduzidas para o idioma moderno. 

JC: O cenário dos livros de Erasmo era a Igreja. Por quê?

AG: Erasmo foi educado num mosteiro de frades e ele mesmo foi padre. No entanto, não se dava com os ambientes das comunidades religiosas e pediu, e conseguiu, de Roma a dispensa dos votos religiosos, o que lhe permitiu viver de forma independente e subsistir do seu trabalho. Pretendeu reduzir o cristianismo à sua mensagem essencial e limpá-lo de muitas das superfluidades e coisas inúteis que acabavam por mascarar a verdadeira mensagem de Cristo: superstições, ritualismos, culto de imagens, jejuns e abstinências, compra de indulgências, hipocrisia etc. Porque criticou esses aspetos que considerava negativos e falsas interpretações da mensagem de Cristo, foi criticado pelos setores mais conservadores da Igreja e, após sua morte, suas obras acabaram sendo proibidas pela mesma Igreja.  

JC: ‘Elogio da loucura’ é indicado para qual tipo de leitor?

AG: ‘Elogio da loucura’ pode ser lido por qualquer pessoa com cultura média e que tenha interesse nas grandes questões morais e sociais que têm a ver com o ser humano de qualquer época. A leitura deve ser feita de modo pausado e meditado, e com atenção à ironia, por vezes sutil e fina, de que o autor sempre reveste as suas críticas.  

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Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio

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