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‘O Estado deve repensar sua atuação’

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Desafio permanente para o Amazonas, o desenvolvimento sustentável dificilmente vinga no Estado, uma das causas apontadas é o modelo ZFM (Zona Franca de Manaus) que tem a preservação da floresta usada como contrapartida para se manter funcionando. Titular da Sema (Secretaria Estadual do Meio Ambiente) e presidindo o Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), Marcelo Dutra tenta emplacar as práticas sustentáveis e a governança ambiental na capital e nos municípios do interior. As ações sustentáveis, segundo Dutra sofrem com a falta de comprometimento e debates. Confira a entrevista.

Jornal do Commercio – Em sua tese de doutorado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, “Governos locais para a boa governança ambiental” de 2017, já se apontava a insustentabilidade econômica da maioria dos municípios do Amazonas causada pela falta de governança ambiental e ainda assim, existem projetos que querem a criação de novos municípios. Se isso é irreversível, como o Estado deve proceder?

Marcelo Dutra – É preciso estudar a vocação de cada município a partir do ponto de sua viabilidade econômica, mas não apenas de sua atividade no agro. Hoje a grande parte destes não se sustenta economicamente. Como seria se tivéssemos esse número de cidades multiplicado por cinco? O que teríamos de impacto ambiental vai muito além do que podemos imaginar.

JC – Como expandir essa discussão e promover o desenvolvimento no interior a partir de práticas sustentáveis e qual o papel do Ipaam nesse processo?

Marcelo – O Estado deve repensar sua atuação. O Ipaam vinha atuando como órgão arrecadador e não como expedidor de licenças ambientais, que é a capacidade e obrigação que o governo tem de dar anuência ao uso dos recursos naturais. Então, atuamos onde estão os recursos naturais ou onde estão os maiores contribuintes? É óbvio que onde se fizer mais com menos custos, tenho mais lucro. Só que o foco do Ipaam é a sustentabilidade, não fazer mais lucro em pouco tempo. Faltava o Ipaam descentralizar, compartilhar essa atribuição, levar o licenciamento até onde estão as atividades.

JC – Existem estudos que falam desse distanciamento, que é mais do que geográfico, que acaba favorecendo poucos. O que causa isso?

Marcelo – Em Boca do Acre, há pouco mais de mil quilômetros de Manaus, foram contabilizados 346 mil cabeças de gado vacinados contra a aftosa, quase duas mil unidades de pastoreio e apenas 16 licenças válidas. Isso significa que nós estamos fingindo que eles não estão lá. Se você cria gado próximo a Manaus, a fiscalização chega mais rapidamente e em Boca do Acre parece não chegar.

O resultado foi o abandono do setor produtivo que ficou “invisibilizado”. Houve medidas contra o avanço da fronteira agrícola e de suas atividades irregulares, sim, mas será que não é hora de uma mudança de conceitos? Sou analista ambiental do Ibama e estou licenciado para estar aqui (no Ipaam). Há 20 anos vamos ao sul do Amazonas, no chamado “arco do desmatamento”, aplicamos multas e embargos, o que estabilizou o tamanho da degradação, mas isso não vai ficar assim para sempre, um ano ou outro esse número muda. Pouco, mas muda, e pra cima.

JC – Quais os impactos positivos das fiscalizações e licenciamentos ambientais no setor produtivo amazonense?

Marcelo – Fiz uma experiência-teste em Apuí (1.100 km de Manaus), onde levamos a regularização ambiental por meio de uma equipe de mais de 30 servidores. Em 10 dias de ação, o número de processos de licença saltou de 20 para 400. Vamos voltar agora com 200 licenciamentos, quase 100 dispensas e algumas outorgas para piscicultura. Em junho, de posse do mapa de regularizações, aplicamos multas e embargos e nenhum morador da área se sentiu prejudicado. Isso significa que não é o apuiense que desmata o Apuí, e sim o empresário que vende a madeira, ateia fogo, cria o pasto e depois entra em uma máfia de regularização de terras que vem aumentando essa fronteira agrícola, é isso que combatemos com as fiscalizações.

JC – Como convencer o agricultor a ficar no interior, e produzindo, quando esse sabe das disparidades entre a “riqueza” da capital e as poucas perspectivas de cidade pequena?

Marcelo – Para mim a solução já se aponta. Precisamos criar instrumentos de regularização que sejam abrangentes, indo além da ambiental, algo que alie a regularização fundiária e a inclusão social. Qual a diferença disso? é que aquele que foi posto à margem da lei pelos embargo, vai optar por derrubar um pouco mais a mata todos os anos, já que está fora da cobertura do Estado. Se dermos a chance deste se regularizar, ele passa a ter financiamento e acesso a mercados, certificações e padronizações. Quando a fiscalização voltar a sua cidade, o agricultor vai fazer questão de ir lá mostrar seu licenciamento como um salvo-conduto.

JC – Uma ação recente que busca aliar sustentabilidade, desenvolvimento econômico e políticas de regularização ambiental foi o reconhecimento por parte do governo do Estado da pesca esportiva como recreação protegida por lei. Em uma época em que sustentabilidade virou um selo para bons negócios, o que isso significa para o Amazonas?

Marcelo – O Amazonas tem mais de 7 milhões de hectares no período perene, tem um gigantesco potencial de turismo e ecoturismo e é um grande produtor de pescado, cenários para pesca e outros aspectos que ainda não são explorados pelo Estado. Não sabemos de nossa produção atual e nem de quantos barcos pesqueiros temos em nosso território, mas sabemos que alguns países e alguns Estados desses países têm um ou dois rios e geram uma riqueza enorme. Se estamos sempre ligados à lógica econômica é hora de estarmos de olho na lógica sustentável.

Se você vem para o Amazonas e em três dias não consegue pescar, você não volta mais e ainda faz uma campanha contra o Estado. Na pesca esportiva, o peixe é devolvido e sempre vai haver peixe para ser pescado. O pescador nativo vai ver esse valor e cuidando dos rios passa a ser um “criador”. Para isso foi criado um app que mapeia todos esses pontos de pesca, os pilotos, os hotéis licenciados e até os restaurantes. É algo que abarca toda uma cadeia turística. A intenção é fazer com que os atuais R$ 50 milhões arrecadados sejam aumentados em 10 vezes.

JC – Para manter-se a ZFM o país cobra que as floresta seja mantida em pé. Como desenvolver o Estado e manter esse compromisso?

Marcelo – A ZFM é um modelo que trouxe riqueza a capital, concentrando aqui todos os recursos para o crescimento, mas que mantém o interiorano em uma situação de segunda classe. Assim nossa cultura extrativista sonha em ser uma cultura industrial, mas sempre à sombra da dicotomia de estar cercado de riquezas naturais e de ter uma enorme pobreza humana.

Apuí é novamente um exemplo. Na década de 1980 quando da criação do assentamento do Juma, quem não desmatasse 50% de suas terras perdia sua posse, esse foi um sistema de desmatamento fomentado. Hoje temos alguma coisa de floresta recuperada, mas é importante que a terra seja também produtiva e que o agricultor ajuda na preservação e na continuidade da biodiversidade, vendo essa como uma riqueza local. E isso só se dá por meio da governança ambiental, que é compartilhar, empoderar e trazer para perto do povo. Hoje todos sabem um pouco sobre o meio ambiente, mas Ibama, Ipaam, Chico Mendes, tudo parece distante. A governança ambiental traz essa aproximação.

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
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