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Nicodemos Sena: “um livro autêntico e verossímil”

Na quarta-feira (13), o escritor paraense/amazonense/paulista Nicodemos Sena lança em Manaus o seu clássico ‘A espera do nunca mais’. Estudado em universidades de Manaus e de Belém, o livro, com suas mais de mil páginas, é indicado para quem deseja conhecer um pouco sobre a Amazônia e quem vive na região. O lançamento ocorrerá na Galeria Etnia (rua Tapajós, 19 – ao lado da igreja de São Sebastião), organizado pelo Clam (Clube Literário do Amazonas) e pela Canoa da Cultura. Em entrevista ao Jornal do Commercio, Nicodemos Sena adiantou sobre o conteúdo do seu livro e falou a respeito de algumas das situações diárias da Amazônia.

Jornal do Commércio: ‘A espera do nunca mais’ tem tudo a ver com essa situação que a Amazônia está vivendo hoje?

Nicodemos Sena: Escrevi esse romance de 1986 a 1996. O tempo principal da narrativa vai de 1950 ao final da ditadura militar em 1984. O ‘pano de fundo’ mostra uma Amazônia invadida pelas madeireiras, mineradoras, empresas pesqueiras e o agronegócio. Os efeitos destrutivos desse processo já se mostravam no sul do Pará, onde a floresta e sua biodiversidade eram destruídas pelas motosserras e em seguida incineradas para criação de pasto para o gado. Crateras infernais, como a de Serra Pelada, eram abertas acarretando tantas outras chagas. A grilagem e a concentração fundiária se agravavam, produzindo uma relação quase infindável de assassinatos no campo. No transcurso desses 26 anos, os efeitos daninhos avançaram para o norte e oeste da Amazônia. Isso vem relatado, de modo profético, nas mil páginas do ‘A espera do nunca mais’.

JC: A imprensa não para de falar da morte do jornalista inglês e do indigenista brasileiro, mas indigenistas sempre foram mortos na Amazônia desde a época do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) e jornalistas só podem entrar em áreas indígenas com autorização da Funai, coisa que os dois não tinham.

NS: Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, no Vale do Javari, mostram que a vida de uma pessoa que signifique algum estorvo aos interesses do crime organizado tem pouco ou nenhum valor num território indígena. Se os criminosos ousaram assassinar duas pessoas posicionadas como Bruno e Dom, imagino o que são capazes de fazer a pessoas desprotegidas e anônimas. Parece-me natural e compreensível que a imprensa trate com relevância esses dois crimes bárbaros. O que não me parece natural é que representantes das instituições do Estado brasileiro achem normal que atividades econômicas ilegais como a madeireira, a garimpagem, a pesca, se estabeleçam num território que deveria ser protegido.

JC: O mundo inteiro destruiu, e destrói, suas florestas. Não acha estranha essa preocupação com a floresta amazônica?

NS: Sim. Há muita hipocrisia nessa ‘defesa’ que as nações imperialistas fazem da Amazônia, quando são elas, por exemplo, que consomem a maior parte das coisas daqui arrancadas. Para onde vai o nosso mogno, o jacarandá? Para onde vão nossos peixes ornamentais e matrizes genéticas? Para onde vai nosso ouro? Claro que essa sangria dos recursos naturais da Amazônia acontece com a cobertura de agentes públicos corruptos e políticos venais, que atuam na regularização fraudulenta das atividades predatórias praticadas pelo capital estrangeiro e nacional com acumpliciamento das oligarquias locais.

JC: O que pensa de tantas ONGs estrangeiras na Amazônia (38 milhões de habitantes) e nenhuma se preocupando com o árido sertão do Nordeste (53 milhões de habitantes)?

NS: A criação de organizações não-governamentais é algo salutar, que fortalece a sociedade civil em face da onipotência do Estado. Mas a proliferação dessas organizações no Brasil, muitas delas alimentadas por recursos estrangeiros, é um fenômeno preocupante. Não se pode generalizar, mas, não raramente, por trás da defesa da natureza física e humana realmente ameaçada que essas ONGs fazem na Amazônia estão os olhos cobiçosos de corporações e Estados estrangeiros.

JC: Os indígenas de hoje não são mais ingênuos como no passado, mas a mídia tenta mostrá-los como um único povo indefeso. Quem vive aqui sabe que isso não é verdade. Qual a visão de vocês, aí ‘de baixo’?

NS: Os brasileiros do Sudeste-Sul do Brasil têm, em geral, uma visão distorcida e preconceituosa em relação à realidade amazônica. Não acordaram para o fato de que a Amazônia não é uma ‘terra vazia’ habitada por um punhado de gente ‘atrasada’ e ‘selvagem’. Três dezenas de milhões de pessoas, de várias etnias e que falam mais de 100 línguas, vivem aí. Filhos da terra, indígenas e ribeirinhos, compõem uma geração nova de mestres e doutores, e, assim, se capacitam a defender e gerir os interesses de seus povos. Todavia, a tutela do Estado brasileiro, exercida através de uma Funai (Fundação Nacional do Índio) dirigida por pessoas contrárias ao exercício das finalidades protetivas da instituição, mantém os povos indígenas excluídos da vida social e política do nosso país.

JC: Como seu livro pode ser importante para quem vive na Amazônia e para quem quer saber um pouco mais sobre a região? Ele continua atual, 22 anos depois?

NS: Dediquei pelo menos cinco anos da minha vida em pesquisa de campo, em livros e arquivos públicos, para poder lançar-me à escritura de ‘A espera do nunca mais’, mas não teria escrito esse livro enorme se não tivesse nascido no oco da selva do meu rio Maró, em Santarém. A vivência permitiu-me escrever um livro autêntico e verossímil. A pesquisa, por sua vez, garantiu-me a recriação metafórica, lírica e filosófica de uma Amazônia total, a um tempo arcaica e moderna, campesina e urbana, tragicamente bela e desfigurada pela ação desregrada de um capitalismo de periferia. Uma Amazônia, infelizmente, cada vez mais atual.

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Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio
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