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‘Não tenham medo de comer peixes’, diz o pesquisador Roger Crescencio

A veiculação de fake news sobre a incidência de rabdomiólise pelas mídias sociais vem afetando toda a cadeia produtiva de peixes no Amazonas, principalmente em Manaus, que hoje consome, em média, 200 mil quilos de pescado por dia, segundo Roger Crescencio, engenheiro de pesca, mestre em biologia aquática e pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

A situação é grave. Feiras, supermercados e peixarias já sentem os impactos da crise. Trabalhadores estão sem opção para sobreviver. É nesse segmento que muitos encontram o sustento no dia a dia. A crise atinge também os vendedores de verduras e outros ingredientes usados no preparo dos pescados. É um efeito dominó. Se ninguém vende, os estoques encalham.

Mesmo com as garantias de que ingerir peixes de outras espécies, com exceção do pacu, tambaqui e pirapitinga de lagos e rios, as pessoas têm evitado comprar o produto. Até os criados em cativeiros não são consumidos.

Quase todos os restaurantes que trabalham principalmente com tambaqui de viveiro estão fechando as portas em Manaus. O consumidor sumiu desde o surgimento das primeiras notificações de rabdomiólise a partir de 20 de agosto. A situação também é recorrente em municípios do interior do Estado.

“Existem muitas informações ruins, inverídicas, que estão deixando a população em polvorosa. Não há motivos para pânico”, garante Roger. Ele avalia que o governo adota uma estratégia muito morosa em suas ações e deveria dar uma resposta rápida e efetiva que convença a população a continuar consumindo pescado, sem o menor risco.

“Não tenham medo de comer peixe, principalmente os oriundos da piscicultura que passam por um rígido controle de qualidade e saneamento básico”, acrescenta o especialista. “Não entrem em pânico”, afirma.

Ele informa que os casos da doença da ‘urina preta’, como é conhecida popularmente a rabdomiólise, estão restritos às regiões dos municípios de Itacoatiara, Parintins e Itapiranga, mas só envolvendo pescados capturados em rios e lagos das espécies pacu, tambaqui e pirapitinga.

Até agora, as autoridades sanitárias do Amazonas confirmaram 53 casos de pessoas que passaram mal após ingerirem esses três tipos de peixes,  disse Roger. Mas nada impede que  a população continue consumindo jaraqui, pirarucu, matrinxã, espécies nas quais ainda não foram notificadas ocorrências  de rabdomiólise, garante ele.

O pesquisador afirma que o  poder público adota uma estratégia ultrapassada ao divulgar notas na imprensa para tranquilizar a população num momento em que as informações são  veiculadas em tempo real nas mídias sociais.

“Os recursos online têm um impacto imediato. Leva muito tempo para as notas chegarem às pessoas. É hora de o governo se atualizar e partir para uma campanha mais acirrada utilizando as novas ferramentas tecnológicas”, afirma ele.

Roger falou com exclusividade ao Jornal do Commercio.

Jornal do Commercio – Qual a repercussão dos casos de rabdomiólise entre os órgãos que tratam do setor produtivo no Amazonas?

Roger Crescencio– Não é a primeira vez que acontece um surto de rabdomiólise no Amazonas. Já houve em 2008, depois em 2015 e, agora, em 2021.

Infelizmente, a culpa recaiu primeiro na piscicultura com a produção de pacu. Mas ninguém nunca produziu essa espécie em cativeiro. Os primeiros surtos pegaram a todos de surpresa.

Mas agora o novo surto chegou como muito mais força por causa das fake news veiculadas pelas mídias sociais. É tanto ‘disse-me-disse’ que vem deixando as pessoas em polvorosa .

Foi detectada a doença da ‘urina  preta’ praticamente em três pescados – pacu, tambaqui e pirapitinga da natureza.

Mas a população parou de comer todo tipo  de peixes. Não come mais jaraqui, matrinxã, sardinha, que não têm nenhum problema. É muito desespero por desconhecimento. Não tem nada a ver.

Estamos tendo muita perda econômica na piscicultura e na pesca por exagero das fake news. É uma repercussão muito negativa.

JC – O poder público parece não ter dimensionado a gravidade do que estamos passando. Faz parte da cultura gastronômica do nosso Estado o turismo associado ao consumo de peixes na culinária regional. Acha que é necessária uma maior campanha de esclarecimentos para derrubar essas fake news?

RC– Acho que o poder público não está deixando de fazer, mas está agindo de uma forma errada, ultrapassada.

As informações são veiculadas de forma muito rápida pelas mídias sociais. Boa parte do poder público ainda está em outras épocas.

Tem um grande problema em apenas dar uma nota escrita e botar num jornal. Qual o alcance que terá essa nota?

Estou aqui porque viralizou um video que fizemos falando da doença da ‘urina preta’. E aparecemos comendo peixes, demonstrando confiança no consumo.

Recebi manifestações de Brasília, Minas Gerais, Tocantins, São Paulo, Rio Grande do Sul, praticamente de todos os lugares. Aí se vê o poder que têm as mídias sociais.

E tem gente dizendo que estou mentindo. Falta aos órgãos partirem para uma ação mais direta. E falar que o problema só está acontecendo com  tambaqui, pacu e pirapitinga da  natureza.

E que peixe de piscicultura não causa a doença. Eu estou tendo ajuda total da FVS-RCP. O poder público ainda está no tempo das notinhas, Isso não tem muito impacto.

JC – Quais são as últimas informações sobre o número de casos. Já falam em mais de 50.

RC–  São em torno de 53 casos. O medo é tanto que qualquer pessoa que sente dor no corpo ou algo diferente já diz que está com a doença da ‘urina preta’.

Então, essa pessoa já tem histórico de doenças e por acaso comeu peixes. É muito comum, normal, comer peixes na região.

Aqui tem muita gente que acredita ter espécies de peixes pra comer no café da manhã, no almoço e no jantar. Estão querendo incluir o pirarucu como causa também da doença.

Mas a mesma família que apresentou a doença comeu pirapitinga e pirarucu.  Quer dizer, todos comeram um rodízio de peixes só no almoço.

Os quatro casos registrados em Parintins foi devido ao consumo de um tambaqui só. São raríssimos os casos. Por que todo esse alvoroço?

Em Parintins, um amigo meu professor está comprando peixe grande de lago que, em geral, custa 60 reais, por 30 reais. Como não tem pra quem vender, o cara vende por esse preço. Está estragando comida e muita gente não tem  o que comer.

JC – Tem alguma região específica de onde estão vindo esses peixes….?

RC– Cerca de 80% dos casos estão ligados à região de Itacoatiara, Silves e Itapiranga.  Faço parte de uma irmandade chamada engenheiros de pesca que está em qualquer parte do interior, sempre tem um engenheiro por perto.

Tem engenheiro que está verificando casos em Maués. Estamos acompanhando tudo. A pessoa começa a sentir dores duas horas após ingerir o peixe contaminado. Geralmente, o grosso dos casos vem da área de Itacoatiara.

JC – Os preços da carne e do frango estão quase que proibitivos. O peixe é opção imprescindível para muitos na cesta básica. Qual a mensagem que você deixa para tranquilizar as pessoas do interior?

RC – Digo  às pessoas do interior que não está acabando o mundo. Que mantenham a tranquilidade e continuem comendo peixes. São casos raríssimos. Não é todo peixe que está contaminado.

Em Manaus são consumidos, em média, cerca de 200 mil quilos de peixes por dia. E a gente só teve 53 casos da doença em todo o Amazonas. É muito pouco. Temos quase 4 milhões de pessoas e só aconteceu isso.

Se alguém está com muito medo e desesperado,  evite então comer tambaqui, pacu e pirapitinga da natureza.

Se for  tambaqui e matrinxã de cativeiro, não tem problema nenhum. Em 2008 e 2015, disseram que os surtos foram causados pela piscicultura. E não foi.

Em Parintins, meu amigo foi comprar um peixe de piscicultura e uma senhora quase bate nele dizendo ‘você vai matar sua família, esse peixe está contaminado’.

E ele respondeu  ‘nada disso, sou engenheiro de pesca, nunca aconteceu isso na piscicultura’. Então, é muito desespero por nada.

JC – O consumidor tem como saber que o peixe é de viveiro…?

RC – Em Manaus, quase que a totalidade de tambaqui é de piscicultura. Raríssimos são de pesca.  Tudo é de piscicultura. É  só ver o rabo. Se estiver  todo inteirinho, sem mordidas de piranhas, é porque ele foi criado em tanque.

Em Itacoatiara, Parintins e Maués tem muito tambaqui de piscicultura, matrinxã também, mas mesmo assim o pessoal não está comendo.

JC – E tem toda uma cadeia produtiva. Quem compra o peixe, leva também verduras. E todos são praticamente afetados….

RC – Sim, o peixe é um grande ímã, chama muito o consumo. Existe  até uma briga recorrente entre supermercados com os vendedores e produtores de peixes.

Os supermercados nunca trataram o peixe como um produto, mas como chamariz.  Compra por um preço e revende bem baratinho. E lá, quem leva um peixe adquire outros 25 produtos,

Então, tem toda uma cadeia sofrendo os impactos da crise. E também as peixarias. O movimento caiu já quase 100%. E boa parte delas trabalha com tambaqui de cultivo.

JC – Você falou da notinha do poder público que tem pouco impacto para esclarecer a população. Não está na hora de os engenheiros de pesca cobrarem um posicionamento mais firme do governo?

RC – Isso está sendo debatido na associação. Acompanho os casos desde o primeiro surto. Fui a uma reunião da  FVS-RCP. Mas a morosidade do governo ainda é muito grande,

A Sepror e a FVS-RCP estão trabalhando juntas, mas falta ainda uma conclusão das investigações.

Então, devemos tranquilizar a todos. E dizer que o consumo de peixes de cativeiro é seguro e não oferece nenhum risco à população.

JC – Muita gente está fazendo esse apelo….

RC – Sim, é importante dizer que a procedência do peixe é de cativeiro, que não oferece nenhum risco. É uma forma de desencalhar os estoques. Tem que dar garantias pra vender, inclusive os restaurantes que  trabalham com o produto.

As peixarias do Pará também estão investindo no apelo publicitário dizendo que os peixes são de viveiros,

JC – Vivemos na pátria das águas, numa bacia gigantesca, mas ainda importamos o peixe que consumimos. Qual a possibilidade de nos tornarmos autossuficientes, pelo menos na cidade de Manaus?

RC – O carro-chefe que a gente tem é o tambaqui. Manaus já foi o maior produtor de tambaqui do Brasil. Mas foi decaindo.

Agora, Roraima e Rondônia lideram a produção. Manaus está agora no sétimo, oitavo ou nono lugar, mas continua tendo a melhor tecnologia para produção.

Já rodei o Brasil todo visitando fazendas. As de fora produzem mais porque são maiores e têm muito mais volume. Não é por causa da tecnologia empregada.

Em Manaus, os entraves são a legislação ambiental. Infelizmente, nosso Estado tem um nome muito parecido com Amazônia que acaba confundindo as legislações.

Mas todo mundo está do lado da mesma bacia hidrográfica.  Acontece que nossa legislação está muito emperrada.Todo político que está no poder só tem olhos para a Zona Franca. A gente gira em torno da ZFM e não há produção rural.

JC – E tem também a legislação que proíbe a produção de algumas espécies….

RC – Já participei até de debates sobre isso, mas envolve espécies exóticas que dizem que podem acabar com o Amazonas.

A mesma espécie é produzida em Rondônia e Roraima  que  têm o mesmo ecossistema. A tilápia já foi introduzida no Amazonas na década de 80, foi levada pros quatro cantos do Estado. Hoje,  todo o interior tem tilápia.

Mas não se pode trazer tilápia  porque vai dar problema. Vai destruir o Amazonas. É o que dizem.

Não entro nesse mérito. A tilápia não daria dinheiro. O tambaqui dá muito mais dinheiro, é o nosso carro-chefe. Se houver menos rigor na legislação e incentivo governamental, a gente vai deslanchar.

JC – Sabemos que existe um aspecto negativo com essa crise no mercado de consumo. Mas não é uma forma de chamar mais a atenção do governo para direcionar um melhor olhar sobre a questão e que promova soluções?

RC – Talvez esse problema sirva agora para as autoridades olharem  mais para a importância do pescado. O peixe ainda está num nível primitivo.

E no interior é muito complicado. O peixe é vendido sem gelo, sem as menores condições de conservação. Quanto mais longe de Manaus, a situação é pior.

Tem interior que tem mais moscas do que peixes. Tem bairros de Manaus onde ainda é assim. Vi um cara tratando peixe numa kombi em cima de um papelão e jogando escamas e vísceras pela janela. Ia pra vender o produto no bairro Santa Etelvina.

Quer dizer, sem as mínimas condições sanitárias Devemos saber que a rabdomiólise não dá somente em peixe contaminado,  mas também por salmonela em peixes estragados.

JC – Aquela situação da venda de peixes em canoas no centro também é complicada…

RC – Não posso afirmar porque não vou lá há muito anos, não trabalho com a pesca, mas sim com a piscicultura. Quando vi a feira foi à noite. Mas amigos disseram que melhorou muito.

O que vejo são as pescarias de bairros e no interior, principalmente. As grandes peixarias já estão com inox, bacanas, em Manaus.

JC – Fale sobre os sintomas caraterísticos da doença?

RC – Geralmente, acontece poucas horas após a ingestão do peixe contaminado, com dores no corpo como se tivesse participado de uma maratona de exercícios. Muitas dores musculares.

A urina preta é um grande sinal, mas às vezes ela não aparece. Na dúvida, é bom beber bastante água pra não sobrecarregar os rins. Se tiver dúvida, é melhor buscar o hospital.

Não tenham medo de comer peixe. Continuam comendo, isso geralmente acontece só em algumas épocas do ano. É hora de tirar alguma lição dessa situação.

JC – A própria profissão de engenheiro de pesca acaba ganhando um pouco mais de visibilidade com essa crise. Seria bom trabalhar mais junto às comunidades?

RC – Vai haver uma maior  visibilidade sobre a importância do engenheiro de pesca na cadeia produtiva.

Haverá aumento na credibilidade e mais confiança no consumo de peixes criados em cativeiros. Aumentará a aceitação da cadeia produtiva da piscicultura e mais reconhecimento do engenheiro de pesca. E, possivelmente, vamos olhar mais pra sanidade do pescado na nossa região.

Foto/Destaque: Danilo Rodrigues

Marcelo Peres

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