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‘Não tem mais nenhum consumidor de peixe’, diz Davi Lima

O surto de rabdomiólise vem causando uma reação em cadeia no Amazonas – a população deixou de comer peixes, impactando diretamente na comercialização do produto no mercado consumidor local, segundo Davi Lima, o Davi dos Feirantes, que preside o Sindicato dos Feirantes de Manaus.

Davi alerta que a situação começou a ficar caótica quase no final de agosto, quando surgiram os primeiros casos da doença da ‘urina preta’, como é conhecida popularmente a rabdomiólise.

Os negócios do segmento despencaram, aproximadamente, 30%, alavancando as vendas de carne e frango cujos preços estão inflacionados. Até os peixes criados em viveiros não são vendidos. “São penalizados tanto os vendedores como os consumidores”, diz o sindicalista.

Assustadas, as pessoas têm evitado ir às feiras que se encontram praticamente vazias, sem públicos. Só alguns feirantes tentam, a duras penas, vender alguma coisa. Os comerciantes amargam pesados prejuízos, tanto os fornecedores como os atravessadores dos produtos. Na realidade, não há para quem vender.

“Em mais de 20 anos como revendedor de peixes e filho de pescador, nunca ouvi falar dessa doença aparecer aqui no Amazonas. Nem tampouco tomou conhecimento meu pai que pescou por mais de 60 anos”, diz Davi. Ele não consegue nem sequer pronunciar o ‘palavrão’ (como próprio admite) que dá nome à infecção – rabdomiólise, nome chique, mas ao mesmo tempo assustador.

O sindicalista não esconde a sua preocupação com uma categoria que tem nessas atividades o seu principal meio de sustento. Ele atribui o agravamento da situação, principalmente, à veiculação de fake news e ainda a uma letargia das autoridades de saúde em esclarecer a população se, realmente, o consumo de peixes tem relação com o surto da doença da ‘urina preta’.

“Nenhum representante do poder público nos procurou para avaliar a situação. Tem feirante que não está nem saindo de casa. E muitos trabalhadores estão sendo dispensados. Como essas pessoas vão conseguir continuar sobrevivendo”, lamenta David dos Feirantes.  

Ele defende que as autoridades de saúde tranquilizem a população, dando uma resposta imediata se o peixe é ou não responsável pela doença. “Como só três pessoas adoeceram em Manaus, com mais de 2,5 milhões de habitantes, após comerem peixes? Alguma coisa está errada”, contesta.

Até a feira da Manaus Moderna, por onde circulam milhares de pessoas diariamente, está com os negócios parados. São 3 mil pessoas dependentes desse comércio dinâmico que gera pelo menos 20 mil empregos diretos e indiretos em Manaus, segundo Davi.

Ele falou com exclusividade ao Jornal do Commercio.

.Jornal do Commercio – É a primeira vez que vocês, como feirantes, ouvem falar da rabdomiólise, doença da ‘urina preta’?

Davi – Como feirante e filho de pescador que sou, é a primeira vez que ouço falar da doença aqui no Amazonas. Antes disso, só soube que aconteceram casos na Bahia, onde duas irmãs morreram.

JC – Vimos que a doença impactou diretamente na comercialização de peixes no Amazonas, atingindo toda a cadeia produtiva. As autoridades de saúde dizem que o surto é sazonal. Em algum momento, vocês foram procurados para participar dessas discussões?

Davi – Infelizmente, não fomos procurados, mas conversei com o secretário estadual de Saúde, dr. Anoar Samad, que ficou de nos ajudar com relação a uma melhor divulgação sobre a doença.

Até agora, tudo que estamos sabendo é via imprensa. Mas existem muitas fake news, inventam histórias. Todo mundo virou cientista pra falar sobre um assunto que está assustando a população

Isso não é verdade. Trabalhei por mais de 20 anos como feirante. Ainda tenho box na Manaus Moderna. Sou filho de pescador. Somos quatro irmãos, eles também nunca ouviram falar da doença.

Meu pai pescou por mais de 60 anos e também nunca ouviu falar da doença. Se ela é sazonal, estamos sabendo agora. Eles não sabem a dimensão do problema que isso está causando para a categoria.

A feira da Manaus Moderna não tem mais nenhum consumidor, com exceção das pessoas que trabalham com peixes. E isso gera uma situação muito ruim, não somente para os feirantes como também pra população que está deixando de comprar peixes pra comprar carne que está muito cara e também o  frango, aumentando ainda mais os preços.

Mais de 85% do tambaqui consumido em Manaus vem de Boa Vista  e de Porto Velho. Então, não tem caso nenhum nessas cidades. É uma situação delicada que o governo do Estado não está sabendo tratar. As autoridades sanitárias precisam se manifestar urgentemente em relação a isso e dizer qual a espécie de peixe que está causando esse problema, se é que realmente a doença vem daí.

Se for o tambaqui, eu mesmo, como representante dos feirantes, vou fazer uma campanha pra que eles não comprem esse peixe porque logo não vão ter pra quem vender.

JC – Você disse que 85% do tambaqui comercializado em Manaus vem de Boa Vista e de Rondônia. O comercializado na feira da Manaus Moderna é importado ou pescado nos rios do Amazonas?

Davi – Mais de 80% do tambaqui comercializado na feira da Manaus Moderna vem de Roraima e Rondônia. Esses peixes foram analisados, passaram por laboratórios. E foi comprovado que o peixe tem procedência e uma qualidade muito boa.

Na Manaus Moderna, só 10% do tambaqui é da natureza, o resto vem de viveiros. Então, nem esses peixes criados em viveiros os feirantes estão conseguindo vender. Porque a população não está indo às feiras.

JC – Acha que é obrigação das autoridades fazer uma grande campanha para não criar esse terrorismo na cadeia produtiva…? De que forma podem contribuir para tranquilizar a população?

Davi – Estamos procurando nos unir a outras entidades também.  O Terminal Pesqueiro e outros revendedores estão tendo muitas dificuldades pra vender os peixes. Os fornecedores também não conseguem comercializar.

Mas uma coisa eu asseguro – o peixe comercializado em Manaus não vem do Baixo Amazonas, na região de Itacoatiara, Parintins, onde foram notificados casos da doença.

Os peixes vêm de Tefé, da Reserva do Mamirauá, onde não houve nenhum caso. O governo precisa fazer uma campanha urgente porque a situação está difícil para o segmento.

Perdemos muitos empregos e deixamos de gerar muita renda com isso. Os trabalhadores estão sendo dispensados. Tem feirantes que já não saem de casa porque não têm pra quem vender. E isso logo vai atingir as feiras por completo, impactando nos vendedores de verduras, hortaliças, temperos.

Não estou tentando minimizar a doença, os problemas de saúde, mas está faltando uma orientação melhor por parte das autoridades sanitárias.

JC – A situação já está afetando as pequenas feiras nos bairros mais distantes?

Davi – Se já atinge a feira da  Manaus Moderna, que funciona como uma central de abastecimento, imagina nas outras feiras. A crise já está na Panair, no Alvorada e na Compensa, que também reúnem muitos feirantes. Até as grandes redes de supermercados sentem os impactos da crise.

JC– Existe um aspecto social muito importante porque muita gente está envolvida nessa cadeia produtiva. A  carne e o frango vêm sofrendo um processo inflacionário muito grande. Então, o peixe se torna uma opção necessária. Isso tudo mostra a importância desse setor?

Davi – Realmente. Costumo dizer que o poder público deve muito ao feirante. Mas quem tem o dever de abastecer é o poder público.

É o feirante também que abastece, além de Manaus, os outros 61 municípios do Amazonas. Estamos trabalhando com cheiro-verde vindo do Ceará. A macaxeira vem do Pará e a farinha também.

Não produzimos quase nada. O Amazonas não é sustentável em nenhum produto vendido em feira. Se os feirantes fizessem uma paralisação em dois dias, não teria nada pra se comprar na cidade.

Tudo sai da feira da Manaus Moderna, feira da Panair, Feira do Produtor e da Feira da Banana. A população, hoje, precisa saber da importância do feirante. E nem a Sepror e outros órgãos cumprem a sua obrigação.

JC – Vendedores com carrinhos de mão comercializam peixes e verduras. Vocês estão pretendendo chamar as autoridades para fiscalizar, coibir a prática, ou fazer por conta própria?

Davi – Muita gente compra um peixe estragado nesses locais e diz que comprou na Manaus Moderna. Já tentei. Contratei segurança pra combater a  comercialização ilegal, mas fui obrigado a recuar porque não era a minha competência.

Solicitei providencias à Secretaria de Abastecimento, ao Ministério Público.  Hoje, Manaus virou a maior feira a céu aberto do planeta, comercializando todo tipo de produtos sem procedência.

As calçadas foram invadidas por ambulantes e imigrantes. O  turista leva daqui uma má impressão da cidade, principalmente na região do Mercado Adolpho Lisboa.

JC – Neste ano, houve a construção de uma feira flutuante para dar acesso aos produtos vendidos durante a enchente no centro. Fale-nos dessa iniciativa.

Davi – Ainda sofremos as consequências das medidas restritivas impostas pelo governo estadual por causa da pandemia. Um público que era atendido em 19 horas passou a ser atendido em apenas quatro horas. As feiras abastecem praticamente todos os segmentos.

A feira flutuante foi  um projeto maravilhoso da prefeitura. Mas infelizmente todas as ruas do centro ficaram alagadas, logo a população não tinha como chegar. Feirantes amargaram prejuízos durante três meses. Meu irmão perdeu mais de 20 mil reais.

JC – A vida do feirante é difícil…Como estão as perspectivas para o futuro?

Davi – Sou muito otimista com relação à gestão municipal. O próprio secretário municipal do segmento é um ex-feirante da Manaus Moderna. O prefeito Davi Almeida é filho de ex-administrador.

Acredito que com reformas nas feiras e até na área rural teremos dias melhores, com certeza, se Deus quiser. Mas quando a gente começava a melhorar, aí vem essa doença. É muito difícil ser feirante. Acredito que agora só vêm vitórias.

JC – E como está o Terminal Pesqueiro, vai ser mesmo privatizado…?

Davi – A informação que tenho é que não só o terminal como também toda aquela área vão ser privatizados.

Todos pagam para usar o  local que também está sentindo os impactos com a redução nas vendas de peixes.

JC – É a favor da privatização?

Davi – Sou contra a privatização, primeiro porque o local vai ficar nas mãos de pessoas que não entendem muito bem o segmento.

E ainda porque o preço do pescado vai onerar ainda mais para a população. O poder público deveria assumir o terminal implementando uma boa administração.

Foto/Destaque: Divulgação

Marcelo Peres

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