19 de setembro de 2024

Mercado de Carbono não é “salvação” da Amazônia

ENTREVISTA – Márcia Maria de Oliveira: socióloga

O mercado de carbono é um tema complexo que suscita debates intensos sobre sua eficácia e equidade. Enquanto alguns argumentam que pode ser uma ferramenta útil na luta contra as mudanças climáticas, o mercado segue observando a sua eficiência e impactos, especialmente para aqueles que dependem da terra para subsistência e para aqueles que têm uma missão árdua de conservar a Amazônia, vivendo nela e subsistindo dela. 

Em teoria, o mercado de carbono funciona atribuindo um valor econômico ao carbono emitido na atmosfera, incentivando empresas e países a reduzirem suas emissões. 

Para a socióloga Márcia Maria de Oliveira, professora da Universidade Federal de Roraima e assessora da REPAM-Brasil, “o comércio de emissões para o dióxido de carbono tem funcionado como uma espécie de mitigação pelos danos ambientais. É como uma autorização prévia para a destruição ambiental”.  

O Jornal do Commercio conversou com a socióloga para entender o que pode ser uma solução mais assertiva para incentivar projetos alinhados com a conservação da Amazônia.
  

1) Quais são as alternativas futuras ao mercado de carbono?
O grande problema é justamente o “mercado de carbono”. Ao ser transformado em mercado, quanto mais se produz, mais se lucra. Dessa forma, ao invés de reduzir as emissões de carbono, altamente prejudiciais para o planeta, o mercado incentiva a sua produção e comercialização na lógica capitalista da mitigação. 

Alternativas possíveis: o uso racional dos recursos naturais e a consciência de que são bens coletivos finitos e não renováveis, na sua grande maioria; compreender a importância da floresta no equilíbrio climático planetário; combater veementemente o desflorestamento em todos os biomas; tributação de carbono no sistema de comércio de emissões; “políticas de comando e controle” por parte do Estado, que deveria fixar limites para emissão de carbono.

2) O futuro pode estar nas startups e nas soluções inovadoras?

Não adiantam inovações tecnológicas se não houver uma mudança de paradigmas de boa parte da sociedade. Não se trata apenas de mudança na geração de energia. É preciso repensar o consumo de energia. Mesmo algumas matrizes consideradas energias limpas podem apresentar impactos profundos nas populações do entorno e no meio ambiente. As hidrelétricas, por exemplo, pensadas na lógica do mercado, impactam nos cursos dos rios e nas suas faunas que sustentam ecossistemas diversos em cada bioma, provocam enchentes ou secas e contribuem para a crise climática. O biocombustível pensado na lógica do monocultivo da cana ou do dendê é outro modelo com impactos muito negativos para as populações locais e para o ecossistema.

A transição energética é um assunto sério que não tem sido suficientemente debatido pela sociedade que não está se preparando para as necessárias mudanças de paradigmas de produção de consumo. Não adianta encontrar alternativas energéticas que não provoquem mudanças de comportamento e de consumo.  A transição energética impacta diretamente no ecossistema de cada bioma, nos modelos de produção de lixo e na gestão de resíduos na perspectiva da eficiência energética.

Assim, o futuro está na transição energética ética e responsável com uma mudança radical para uma economia de baixo carbono que vai muito além da geração de energia. Essa mudança exige uma profunda transformação de padrões de produção e de consumo. Aliás, o consumismo precisa ser urgentemente revisto nessa proposta de transição energética. O problema é que boa parte da população mundial se acostumou a determinados níveis de consumismo difíceis de serem mudados. Um exemplo disso é o alto nível de consumo de carne. Nosso organismo não precisa de toda a carne que ingere diariamente. Pelo contrário. O alto consumo de carne, especialmente a carne vermelha, acarreta muito mais malefícios do que benefícios à saúde. Além disso, a produção de carne vermelha é um dos ramos da economia que mais promovem emissões de carbono e demais gases do efeito estufa. A produção de frutas, verduras e legumes, especialmente pela agricultura familiar e nos modelos de agroecologia poluem e contaminam os ecossistemas em níveis muito inferiores ao modelo de produção de carne vermelha. Diante disso, se conclui que a questão é muito mais profunda e complexa. E ao invés de pensar em “startups e nas soluções inovadoras” seria muito mais viável conversar com os povos indígenas, com as populações ribeirinhas e com as comunidades quilombolas para reaprender com elas o modo de vida simples e austero que não provoca tantos danos ao meio ambiente. Essa tem sido uma insistente orientação do Papa Francisco na Encíclica Laudato Sí (2015) e na Exortação Apostólica Laudate Deum sobre a crise climática, publicada em 4 de outubro de 2023.

3) A Amazônia precisa mais do que políticas de carbono, que parecem não ser tão transparentes e eficientes na velocidade que precisamos. Podemos esperar soluções específicas nesse mercado para a Amazônia?

Há décadas o mercado de carbono na Amazônia tem sido apropriado por grupos e empresas que se especializaram na mercantilização da floresta. Contraditoriamente, mesmo com o avanço do mercado de carbono, não houve diminuição do desflorestamento. Pelo contrário. Isso significa que o mercado vem comercializando algo que nunca produziu. As florestas que mais funcionam no sequestro de carbono estão em Terras indígenas ou em áreas de proteção ambiental. Ou seja, em setores da sociedade que não comercializam a floresta. Quando o mercado se apropria das florestas preservadas, se apropria daquilo que não lhe pertence. Quando o mercado se encarrega de comercializar a função ambiental da floresta no ecossistema, não investe na sua preservação. Isso é roubo. É biopirataria.

Muito mais do que regular o mercado de carbono, o Estado precisa respeitar as Terras Indígenas e as áreas de proteção e ampliar os territórios de proteção. Precisa entender que a proteção das florestas não é importante somente para a questão do carbono. A função ambiental das florestas vai muito além disso. São as florestas que produzem e distribuem as chuvas e coordenam as correntes de ventos que as distribuem em todo o continente. Quanto mais se devastar as florestas, mais desastres ambientais serão provocados como o que tem ocorrido em diversas regiões do continente nas últimas décadas com as enchentes em algumas regiões e as secas prolongadas em outras com prejuízos tremendos para toda a sociedade.

Lílian Araújo

É Jornalista, Artista, Gestora de TI, colunista do JC e editora do Jornal do Commercio

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