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Idas e vindas da capivara

A capivara é o maior roedor do mundo, pesando até 91 kg e medindo até 1,20 m de comprimento e 60 cm na altura. Pertence à mesma família das pacas e das cotias e, podemos dizer que se trata de um rato gigante. Habita os capinzais das beiras dos rios e várzeas, daí o seu nome capi+uara= morador do capim. Sua carne é gordurosa e nutritiva, sendo muito abundante, nos primeiros tempos, na Amazônia, diminuindo progressivamente a sua quantidade, pelo consumo e também pela caça predatória visando o seu couro, exportado aos milhares. A sua gordura era considerada similar ao óleo de fígado de bacalhau, rico em vitamina D, sendo denominado de Capivarol. Servida assada, cozida ou frita, devido ser por demais gordurosa, conservava-se por muito tempo, sem estragar, como as mexiras do peixe boi, a carne frita mergulhada, na banha, como um bom paio português.

A capivara é o maior roedor do mundo
Foto: Divulgação

Quando meu avô Areal Souto, recém formado em direito, pela Faculdade do Recife, foi para o Acre, em 1910, aos 24 anos de idade, o seu primeiro emprego foi de administrador do seringal São Pedro do Icó, pertencente ao grande seringalista Childerico Fernandes.

seringalista Childerico Fernandes
Foto: Divulgação

Nele, como em todo seringal, havia uma sede, a pequena localidade onde estavam situadas a residência do proprietário ou do seu representante, as residências dos auxiliares da administração da propriedade e os depósitos dos aviamentos e dos estoques de borracha.

Conforto na floresta

Todo seringal que se prezasse, deveria ter um porto próprio, com lenha para vender, como combustível, para as chatinhas e outras embarcações que passassem pelo rio, subindo ou descendo; a sua própria lancha ou navio, nele ancorado; além de dezenas de bolas de borracha bruta defumada, aguardando a passagem da embarcação pertencente a uma firma de Manaus ou Belém, que aviava o seringal.

A casa do seringalista, a sede, geralmente era do tipo palafita, em cujo porão recolhiam-se, ao cair da tarde, as criações do seringal: patos, galinhas, porcos e carneiros, para o consumo, nos dias festivos. Algumas possuíam todo conforto possível naquele tempo, como piano, sala de jantar para as visitas, livros, quartos para hóspedes e outros requintes.

Toda sede tinha um cozinheiro e diversos caçadores, geralmente cabocos amazonenses, conhecedores das matas e dos rios, que abasteciam a vivenda, com peixes e caça, enquanto a tarefa de extrair o látex e defumá-lo, transformando-o em bolas negras como azeviche, e perfumadas, com o cheiro de toucinho de fumeiro, pertencia aos nordestinos, na sua maior parte cearenses.

Na sala de jantar da residência sede do seringal, estando ou não a família do proprietário, participavam das refeições: o gerente, o guarda-livros e as pessoas gradas ou os vizinhos amigos, que passavam pelo porto, subindo ou descendo o rio Purus, entre Sena Madureira e Manaus, e de onde às vezes a viagem estendia-se a um passeio pela terra natal, ou subindo, rumo às cabeceiras, os altos rios, atrás de novos seringais ainda virgens. Mas quando os tempos mudaram, nada mais foi possível, pois o dinheiro desaparecera.

Capivara requentada

Naquele ano de 1910, quando a borracha alcançou o seu preço máximo na Bolsa de Valores de Londres e de Nova Iorque, o movimento da produção estava a todo vapor. Os barcos subiam carregados de um tudo, mercadorias de todos os tipos, das balas de rifle Winchester a creolina, dos artigos de primeira necessidade: feijão torrado e arroz sem casca, para não serem plantados, farinha, charque, sardinha em lata, corned beef e cachaça, aos de luxo, como vinhos, champagne, batatas, cebolas, azeite, bacalhau, compotas, picles, e desciam abarrotados de passageiros, borracha e castanhas. E assim todo dia havia alguém para almoçar ou jantar, no seringal de São Pedro do Icó, para uma conversa amigável com o gerente, um rapaz novo e sabido, vindo do Juruá, e que estudara no Nordeste, e as conversas se iam prolongando. Do almoço passava-se ao jantar, acabando em um pernoite, para a saída pela manhã, após o café.

A mata andava alagada de tanta chuva e a caça escasseava, por mais que os cabocos se esforçassem, e até a piracema de mandi já havia subido o rio. Naquele sábado chuvoso eles haviam conseguido pegar apenas uma capivara meiota, aí de uns 30 quilos. O cozinheiro esmerou-se e preparou-a, para o domingo, bem temperada, assada no forno de barro da sede.

Todos comeram muito daquele prato delicioso, mas sobrou bastante para o dia seguinte, e por mais dois ou três dias o assado voltava à mesa, requentado.

Na quinta-feira apareceram dois visitantes, e o cozinheiro desdobrou-se em retemperar aqueles restos de capivara, pois só havia carne velha, o charque, e feijão com arroz. O almoço foi servido. Os de casa se serviam aos bocadinhos, deixando de lado a capivara, mas nada comentavam, demonstrando boa educação.

Um dos visitantes, o mais mal educado teve, porém, a coragem de comentar ao provar o prato:

– Esta capivara está com um pitiú danado.

E todos desataram em uma gargalhada uníssona.

Passaram-se mais de 70 anos, e aqui em casa, já em Manaus, na casa de minha mãe, Chloé Loureiro, quando se servia um alimento ou sobremesa, por mais de uma vez, ou que não fosse gostoso, principalmente doces, logo um de nós, seus filhos, lembrava dessa antiga história e dizia:

– Isto parece uma capivara.

Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio
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