Pesquisar
Close this search box.

Era uma vez uma cidade pacata

https://www.jcam.com.br/2310_E6.png

Se vivo estivesse, o artista plástico Anísio Mello teria feito 90 anos, em 11 de abril passado. Ele partiu em 2010, mas em 2004 havia dado essa entrevista até agora inédita, falando sobre sua infância e juventude em Manaus. Numa homenagem a um dos maiores artistas plásticos do Amazonas, e a uma Manaus que não existe mais, o JC publica a matéria na íntegra. Anísio Mello nasc eu em Itacoatiara, mas veio para Manaus, em 1927, com apenas seis meses de nascido. Mesmo o seu pai sendo um juiz de Direito, que constantemente era transferido para cidades do interior do Amazonas, Anísio passava temporadas em Manaus, com parentes. “Morei em quase todas as ruas da cidade. Só na Joaquim Nabuco perdi as contas”, disse. Numa dessas casas, uma curiosidade. No vizinho de trás havia uma rinha, nas imediações do atual Pronto Socorro da Criança. “Só recentemente eu soube que essa rinha acabara, ou seja, ela existiu desde a minha infância até agora”, informou.

Na casa onde mora atualmente, ainda na Joaquim Nabuco, funcionou o Liceu de Artes do Amazonas Ester Mello. Ester era a mãe de Anísio e, durante anos ensinou artes no local, ofício que foi assumido por Anísio após a morte dela. Anísio vive há 20 anos no casarão secular, mas desde criança ele visitava o local porque era de uma tia. “Eu tinha uma canoa que deixava ali atrás, no igarapé de Manaus. Ninguém roubava. O igarapé era limpo, não era cheio de casebres, e de noite eu ia pescar peixinhos com os meus colegas, no final dos anos de 1930”, lembrou.

“Nosso quintal ia de casa até a beira do igarapé. Uma vez, após a cheia de 1953, as pessoas que vinham do interior fugindo das águas, começaram a construir seus casebres em toda essa área e chegaram até próximo de casa. Nosso quintal e a tranquilidade acabaram a partir dali”.

“Não havia crimes em Manaus. Quando havia, era um por ano, mas meus pais não deixavam que eu e meus irmãos ficássemos nas ruas para que não nos tornássemos ‘moleques’. Drogas, ninguém sabia o que era. Homossexuais só existiam três, conhecidos pela molecada, mas ninguém falava com eles sob pena de ficar mal visto por todo mundo”, disse.

“As brincadeiras dos meninos do final dos anos de 1930 eram as mesmas de muitos meninos de hoje: manja, pega-ladrão, pião, cangapé, e a garotada gostava de se encontrar nas esquinas, numa mesma hora, para conversar”.

“Nos finais de semana e feriados, já na década de 1940, eu com uns 15, 16 anos, as diversões eram as festas, os cinemas e os balneários. Como eu era filho de um juiz, frequentava o Ideal e o Rio Negro, clubes da elite, mas gostava de ir ao Nacional e o Fast, que eram mais do povão e ficavam em sedes aqui no Centro. Brigas, nem pensar. Lembro que não íamos para essas festas com a intenção de ‘conseguir’ mulheres, como se faz hoje, até porque fazer sexo com uma moça de família, naquela época, era praticamente impossível. O objetivo era dançar, beber uma cerveja, e era mesmo só uma, e conversar com as meninas. Namorar, só nos olhos, e quando muito marcar um encontro para o dia seguinte, um encontro que não ia além da conversa inocente. Os rapazes eram ‘namoradores’ e o assédio era velado”, admitiu.

“Quando completei 15 anos recebi uma cópia da chave da casa, mas as 22h tinha que estar em casa. Meu pai nunca bateu em mim e em nenhum dos meus irmãos. Apenas olhava e nós já entendíamos o recado”.

Os cinemas que Anísio frequentava, nenhum existe mais: Guarany, Polytheama, Odeon e Avenida (todos no centro da cidade) e os banhos, balneários como eram chamados antigamente, praticamente acabaram, engolidos pela favelização e poluição de seus leitos. “Todos ficavam longe da cidade, na distante Flores, o extremo de Manaus. Além dos particulares, como o Bancrévea e o Clube dos Ingleses, existiam vários outros onde não se pagava nada para entrar, como o Parque Dez (inaugurado em 1939). No prédio onde hoje funciona a Fundação Villa-Lobos ficava o grande chapéu de palha do banho. Junto com os colegas do Colégio Estadual, uns dez ou mais, costumávamos ir andando até a praia da Ponta Negra. Demorávamos mais de uma hora caminhando pela estrada de terra, ladeada pela floresta, mas valia a pena quando chegávamos à praia”, falou.

Anísio Thaumaturgo Soriano Mello era polivalente: artista plástico, músico, poeta, professor, escritor, tradutor do russo, jornalista, dirigiu o Liceu Ester Mello, foi membro da AAMAP (Associação Amazonense dos Artistas Plásticos), fundador do Clube da Madrugada e membro da Academia Amazonense de Letras.

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
Compartilhe:​

Qual sua opinião? Deixe seu comentário

Notícias Recentes

Pesquisar