Pesquisar
Close this search box.

Desigualdade e cidadania

https://www.jcam.com.br/Upload/images/Articulistas%201/Art%2001/Breno%20Rodrigo%20Perfil.jpg

A leitura do ensaio do sociólogo britânico T. H. Marshall, intitulado Cidadania e Classe Social, publicado originalmente em 1950 é uma lúcida reflexão acadêmica e cívica a respeito da relação entre desigualdade e cidadania no mundo moderno.

Nas palavras de Marshall, pode-se entender que “o impacto da cidadania sobre tal sistema [laissez-fairiano] estava condenado a ser profundamente perturbador e mesmo destrutivo. Os direitos dos quais o status geral da cidadania estava imbuído foram extraídos do sistema hierárquico de status da classe social, privando-o de sua substância essencial. A igualdade implícita no conceito de cidadania, embora limitada em conteúdo, minou a desigualdade do sistema de classe, que era, em princípio, uma desigualdade total. Uma justiça nacional e uma lei igual para todos devem, inevitavelmente, enfraquecer e, eventualmente, destruir a justiça de classe, e a liberdade pessoal, como direito natural universal, deve eliminar a servidão…” (p. 77).

Ainda na concepção de Marshall, a cidadania no mundo atingiu três grandes metas consolidou suas aspirações cívicas – os direitos civis universais – cuja essência é caracterizada pelas liberdades individuais, de crença, de imprensa e de pensamento.

Já os direitos políticos universais ampliaram os direitos civis para o campo da participação política e controle institucional, ao passo que os partidos políticos, as facções de ideias, e os sindicatos se envolveram cada vez mais na formulação do processo decisório.

E os direitos sociais universais implementaram uma diversificada agenda de reformas sociais, o que potencializou os mecanismos governamentais de intervenção na arena social, onde os exemplos podem ser encontrados na invenção da renda mínima, salário mínimo, saúde pública, educação laica, moradia popular entre outros.

A contínua convivência entre os princípios democráticos e a lógica de uma economia de livre mercado alterou substancialmente a forma como entendemos o mundo e a sua representação. O sistema de livre mercado, alicerçado na filosofia do laissez-faire, acentua taxas de desigualdades sociais, cujas consequências são insustentáveis, tendo em vista o comprometimento estrutural do próprio sistema de livre mercado. Segundo algumas análises produzidas por institutos de pesquisa, a crise gerada em 2008 teve como causa a desregulamentação de áreas econômicas vulneráveis como é o caso do bancário, o imobiliário e o crediário.

Uma das características mais marcantes no Brasil moderno é, insistentemente, o seu sistema de desigualdades. Trata-se de um sistema de desigualdades de identidade multivariada, pois encontra-se estruturado em diferentes variáveis, principalmente, na renda, na região, na cor (raça), no sexo, na idade entre outros. A desigualdade brasileira não nasceu recentemente, fruto de uma correlação casuística. O sistema da desigualdade no Brasil tem raízes históricas e sistêmicas ainda visíveis.

As experiências institucionais formuladas com o propósito de superar as barreiras representadas pelas desigualdades balançaram entre avanços profundos e fracassos incomensuráveis. Os fracassos são conhecidos por todos e, de certa maneira, deixaram marcas ainda não totalmente superadas. Para se ter uma ideia, basta lembrar as políticas de distribuição de leite e outros mantimentos alimentícios para as populações mais vulneráveis na época da Aliança para o Progresso (parceria Brasil-EUA). Ou mesmo a prática de se distribuir “rancho”, a fim de se conquistar a confiança do cidadão e, posteriormente, mediante apoio do voto, vencer uma eleição.

As experiências bem-sucedidas também são recentes na ordem social brasileira. A ampliação e institucionalização dos direitos sociais têm sido o instrumento mais efetivo para se reverter o dispositivo que consolida as taxas negativas de desigualdade. O sucesso dos programas sociais – especialmente, o Programa Bolsa Família – mostra a importância de se distribuir renda por meio das políticas sociais focalizadas visto que o mercado isoladamente não consegue atingir níveis aceitáveis bem-estar social.

Uma observação mais detida do Programa Bolsa Família evidencia que há um relativo equilíbrio entre público-alvo contemplado, a magnitude e alcance do programa. No que se refere ao número de assistidos diretamente pelo programa, constatou-se uma tendência cada vez mais inclusiva e incremental.

O Programa também respeita o critério de justiça regional. Estados mais vulneráveis à pobreza moderada e à pobreza extrema recebem muito mais investimentos. Prioriza-se, primeiramente, os estados da Região Nordeste; num segundo momento, os estados da Região Norte; e, finalmente, estado da Região Centro-Oeste. Os estados pertencentes às Regiões Sudeste e Sul, em virtude de sua dinâmica populacional, educacional e econômica, recebem investimentos mais contidos comparados aos outros Estados da federação.

Historicamente, não há fundamento na afirmativa segundo a qual o mercado pelos seus próprios princípios e mecanismos consegue resolver ou superar os problemas relativos à desigualdade. O ativismo governamental na arena social tem sido uma prática comum em muitos países europeus, especialmente na Inglaterra, França, Alemanha.

Assim, é falaciosa a ideia de que somente pelas leis do mercado de oferta e demanda, auto-ajustadas pelos próprios mecanismos de mercado, poder-se-ia minorar ou mesmo suprimir os níveis de desigualdade extrema.

Os argumentos e retóricas que se voltam contra a expansão dos direitos sociais perderam credibilidade no decurso dos séculos XX e XXI. A constituição de um catálogo de direitos sociais efetivos nos mais variados campos da arena social – saúde, educação, segurança alimentar, moradia, desportos entre outros – tem consolidado um modelo de ativismo governamental que tem respaldo social e assume suas responsabilidades públicas.

*Breno Rodrigo de Messias Leite é cientista político

Breno Rodrigo

É cientista político e professor de política internacional do diplô MANAUS. E-mail: [email protected]
Compartilhe:​

Qual sua opinião? Deixe seu comentário

Notícias Recentes

Pesquisar