Pesquisar
Close this search box.

Deixa eu dançar

“Quando entro no mar, em um rio muito fundo que não dá pé, gosto de mergulhar pra tocar o chão. Pra ver se é areia, lama, se está quente ou frio. E, da mesma forma, se  vou no rasinho, os pés não me bastam. Quero encontar o chão com a mão, passar a água na cara. Ou estou inteira, ou não me interessa estar”. Me disse hoje a analisanda das 8h. Eu achei isso tão bonito, tão bonito, que precisei de umas duas respiradas fundas pra não chorar no meio da sessão. 

Ontem foi dia das mães, Lalá e eu fomos ao show do Caetano. Sofi desistiu no último minuto, Lalá se chateou, o jantar que pedimos chegou ruim e frio, o gatinho subiu na mesa e derrubou uma porcelana que eu amo, amava, paramos pra varrer os cacos, atrasamos, o táxi também. A casa de shows era, talvez, a mais feia que já vi na vida, a nossa vizinha de mesa falava alto ao telefone, tinha um cheiro de fritura impregnado no lugar, tava frio, a moça da outra mesa tossia muito, o moço diante da Lalá tinha os cabelos compridos e os jogava pra trás, quase chicoteando a menina. Sabe assim?

Até que a gente foi chegando. Tentando aproveitar o rasinho. Da reclamação aromática, passamos a invejar as coxinhas, pedimos uma. Prestava, acredita? Oferecemos à vizinha, ela não ouviu e a gente deu graças. Nos empanturramos, inventamos história para o cabeludo e para a doentinha, mangamos da tentativa de ser chique do arquiteto que desenhou a casa. Falamos sobre a vida dele, os pai e os filhos. E nem deve ter tido arquiteto nenhum. 

Escureceu e o show começou. Quando Caetano cantou Leãozinho, Lalá chorou. Disse que lembrava que eu cantava essa pra elas quase todo dia tentando fazê-las dormir. Um plural tão bem empregado que pôs a Sofi com a gente em um segundo. Cantava mesmo. Eu já tinha começado a chorar em Sampa, terceira do show. A parte do “e foste um difícil começo” me pega toda vez. E saí chorando até o fim. 

Mas no bis, quando Lalá levantou pra dançar Odara, e cantou de boca aberta, balançado o corpo vivo, cheio de beleza e de futuro, quando olhei pra mim e pra ela, juntas e livres, embaladas num mesmo desejo, que é, ao mesmo tempo, tão mesmo e tão outro, mergulhei pra tocar no fundo. É areia de praia pernambucana, minha gente, boa de pisar, e tá quentinho lá embaixo. Ontem foi um dia bom. Tô contente, viu? Contente inteira. Odara.

Por Roberta D’Albuquerque

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
Compartilhe:​

Qual sua opinião? Deixe seu comentário

Notícias Recentes

Pesquisar