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Constituição, doa a quem doer

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O país de cem milhões de técnicos de futebol tornou-se o país de cem milhões de juristas. Longe de significar a democratização do conhecimento, a banalização do debate transforma slogans em argumentos, ecoando, algumas vezes, afirmações que têm como matéria-prima a má-fé. A Justiça não pode ser território da ideologia. Nem da vingança ou do desejo pessoal. Hoje, qualquer decisão que condene ou prenda, mesmo sem amparo na lei, recebe aplausos. Qualquer decisão que absolva ou solte o preso, por mais correta que seja, sofre ataque. Até o habeas corpus, ferramenta que desde o século 12 protege o indivíduo contra a opressão do Estado, foi posto sob suspeita.

Chegamos à beira do precipício autoritário. Há quem esboce, sem pudor, o raciocínio de que entre a Constituição e uma indistinta vontade popular se deve ficar com o povo. Como se não fosse a Constituição o único abrigo contra o autoritarismo.

A legitimação das decisões judiciais não advém da reverberação da grita das ruas. Decorre, sim, da observância irrestrita às leis. A voz individual autoritária começa sempre por se impor, então insufla e se mistura à voz da multidão. Até o dia em que não precisa mais do disfarce.

Esquece-se, convenientemente, de que a opinião pública não nasce no abstrato. Forma-se a partir da informação de que dispõe a sociedade. Nesse sentido, a opinião pública é, na maior parte das vezes, filha dileta da opinião publicada e divulgada maciçamente pelos meios de comunicação.

Uma lógica parcial e incorreta continua a inflamar as fogueiras que, todos os dias, queimam reputações em praça pública. Por ela, falta agora condenar mais duas ou três pessoas, de preferência de matizes políticas diferentes, para dar à sociedade a ilusão de que está sendo praticada uma justiça justa. Para dar a impressão de que a sociedade venceu seus inimigos previamente escolhidos.

Nessa cega, surda e insana volúpia condenatória, não há espaço para o respeito à Constituição. Fatos e verdades viram detalhes sem importância, especialmente quando ousam contrariar a narrativa dominante. Pequenos limites legais são ultrapassados todos os dias. Como consequência, surge a ideia de que, quando atrapalha, qualquer limite pode ser ultrapassado. E confunde-se acusação com condenação.
Recentemente, rumorosa operação implementou prisões que tiveram como único objetivo a coleta de depoimentos -apesar de a lei não obrigar ninguém a depor -, na linha das nefastas e odiosas “prisões para averiguações”, protagonizadas ao longo da história pelo aparelho de Estado de regimes autoritários.
Em entrevista recente, o advogado e jurista Nabor Bulhões recordou que a substituição do princípio da legalidade por um difuso sentimento de nação já levou a tragédias históricas, e citou o Código Penal alemão do nazismo: “Delito é tudo o que fere o são sentimento da nação ariana”. Traduzindo: livre das incômodas balizas impostas pela Constituição, delito passa a ser tudo o que os poderosos da ocasião quiserem que seja. O que o Brasil necessita agora é de coragem. Coragem do Judiciário, da imprensa e do mundo político. Coragem para apontar excessos e equívocos, venham eles de onde vierem. Coragem para perceber que, ao comemorar erros cometidos contra um adversário, se legitimam injustiças em desfavor dos próprios aliados. Coragem para enfrentar a maré que tenta fazer submergir os direitos e as garantias dos cidadãos e, com isso, o estado democrático de direito.

Não se pode mais tratar de simpatias ou antipatias pessoais ou partidárias. Acusações injustas e sem comprovação estraçalham vidas e reputações. Não existe democracia sem obediência às leis. Esse é o remédio de que precisamos: Constituição, doa a quem doer.

*é advogado

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
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