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Cheias dos rios do Amazonas

Quem pensa que a curiosidade e o interesse pela enchente dos rios da Amazônia começaram a partir de 1953, com a grande cheia que alagou a frente de Manaus, engana-se. Talvez o registro mais antigo sobre o fenômeno tenha sido feito pelo cônego Francisco Bernardino de Souza, em seu livro ‘Lembranças e curiosidades do vale do Amazonas’, publicado em Belém, em 1873. Impressiona, também, o conhecimento que já se tinha a respeito do fenômeno, conforme a explicação do cônego, com grafia da época.

“Esse immenso volume d’água que se observa e que sem embargo de correr perennemente  para lançar-se no Atlântico, se eleva á altura descommunal de 35 palmos, submergindo terras que parece incrível passarem por essa transformação annual, é todo originado pelas chuvas e pelo degelo das cordilheiras, que attravessam este continente de sul á norte”.

Como se pode notar, vazante e cheia eram anuais, mas eram as cheias que chamavam a atenção do religioso. Também já se tinha o conhecimento que a imensidão de águas provinha das chuvas nas cabeceiras dos grandes rios e do degelo nos Andes. Pesquisas realizadas, em 2012, pelo Instituto Argentino de Neve de Mendoza mostrou que os Andes possuem um mecanismo regulador, que armazena água na época fria e úmida, e abastece os rios em anos secos e quentes. Nos últimos tempos, o degelo na cordilheira está acontecendo com mais intensidade, causado principalmente pelas queimadas na região, o que pode explicar as grandes cheias acontecendo com cada vez menos espaço de tempo.

Cônego bem informado 

Carlos Navarro fotografou o impacto da subida dos rios na população ribeirinha Foto: Divulgação

E o famoso repiquete já era bem conhecido no tempo do cônego Francisco. É quando as águas sobem e, repentinamente, baixam, podendo voltar a subir. Acontecem nos rios em períodos distintos. O cônego explicou assim o fenômeno. 

“O degelo começa a operar-se no equinocio de setembro pela passagem do sol para o hemisfério do sul. As agoas d’essa proveniencia chegam ao leito do suzerano dos rios em novembro, e fazem aparecer o que vulgarmente se chama repiquete”. 

Suzerano é o senhor todo poderoso, no caso, o rio Amazonas. O religioso queria dizer que este rio era o mais poderoso entre os demais da região. 

E se até hoje a enchente amedronta e causa prejuízos aos ribeirinhos, naquela época, com uma população infinitamente menor, não era diferente, conforme registrou Francisco Bernardino. 

“Na verdade são um verdadeiro alarma em toda a extensão do grande rio as primeiras pollegadas d’agoa que sobem acima do nível da ultima vasante. É assumpto de todas as conversações. Cada um faz as suas conjecturas, e perguntam-se mutuamente: Será grande a enchente que começa? A resposta geral é conhecida: Quem sabe? Todos estremecem com as apprehensões de futuros desastres”. 

148 anos depois a pergunta continua sem resposta. Mesmo o Serviço Geológico do Brasil, responsável por organizar e sistematizar o conhecimento geológico do país, incluindo as águas, se baseia em dados estatísticos para prever se as enchentes ‘serão grandes’, como escreveu Francisco Bernardino, ou não, sem afirmar, com certeza, qual será sua real extensão.

Avisos do SGB

D’Castro é outro fotógrafo a registrar a cheia invadindo as ruas do Centro Foto: Divulgação

Naqueles idos de 1800, o cônego lembrava que no rio Nilo havia um padrão de progresso das águas e com isso se conseguia administrar o fenômeno, e reclamava que o mesmo não acontecia aqui.

“Entre nós, que vivemos em tempos de progresso, ainda ninguém se lembrou de estudar um meio pelo qual se possa determinar os phenomenos que precedem as grandes enchentes para assim evitar-se enormissimos prejuízos”,

Mas errou ao achar que isso seria possível. Até agora não foi.

“Estou na convicção de que se póde com precisão prediser si uma enchente tem de ser ordinária ou extraordinária pela observação das causas que a determinam”.

O que o Serviço Geológico do Brasil faz, atualmente, para tentar minimizar os impactos, é produzir semanalmente o ‘Boletim de Monitoramento Hidrometeorológico da Amazônia Ocidental’ com informações colhidas nos principais rios do Amazonas, Roraima e Acre. Esses boletins trazem informações sobre os níveis atuais dos rios, comparando-os com dados das séries históricas, em forma gráfica, tabular e textual, de forma a facilitar o entendimento por todo tipo de leitor. Além disso, os boletins trazem ainda informações relacionadas à pluviometria por satélite, obtidas e interpretadas por meteorologistas do Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia). Os boletins são enviados para uma lista de e-mails onde estão cadastrados órgãos competentes relacionados como Cenad, Cemaden, ANA, Defesas Civis estaduais e municipais, Marinha do Brasil, Fundação de Vigilância em Saúde, dentre outros, além de ser disponibilizados no Sace (Sistema Computacional de Apoio aos SAHs – Sistemas de Alerta Hidrológico) para o público em geral.

Recorde atrás de recorde

Selma Carvalho flagrou cena com o transporte público Foto: Divulgação

As populações dos tempos do padre acreditavam que “cahindo tarde a paschoa da ressurreição, há grande cheia”, no que ele não acreditava e lembra duas outras grandes cheias ocorridas poucos anos antes. E pede que se preste atenção no repiquete.

“As festas móveis, porém, não podem servir de regulador; porque si a cheia de 1859 foi grandissima, cahindo a paschoa a 24 de abril, a de 1866 foi também muito grande, cahindo a paschoa no 1º de abril. De sorte que bem se póde dizer aos lavradores do Amazonas: acautelae-vos todas as vezes que o repiquete de novembro sorprehender os igapós ainda ensopados ou cheios, e que se sigam grandes e continuadas chuvas”.

Somente a partir de 1902, com as novas instalações do porto de Manaus construídas pelos ingleses, começou-se a medir a elevação e baixa do Negro em frente à cidade. Até então só se sabia das dimensões dessas cheias de acordo com os estragos que promoviam nas plantações e criações dos ribeirinhos. Foi assim que se consagrou a cheia de 1953 com seus 29m69, alagando a frente de Manaus como nunca antes havia se visto. O acontecimento foi batido somente 56 anos depois, em 2009, ano em que o rio atingiu a marca de 29m77. Qual não foi a surpresa dos manauaras quando apenas três anos depois, em 2012, a alta do rio bateu novo recorde chegando a 29,97.

Passados nove anos e eis que o rio promove novo espetáculo para a população que agora, de posse de um celular, não se cansa de fazer selfies, no Centro, tendo o rio como cenário. No próximo dia 29, se o Negro continuar sua trajetória ascendente, poderá bater o recorde de 2012 e entrar para a história como a maior cheia até não se sabe quando.      

Foto/Destaque: Divulgação

Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio
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