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“As fugas em família me emocionam”

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Os primeiros escravos negros chegaram ao Amazonas durante o período de governo do Marquês de Pombal (1750 a 1777) quando, de acordo com Arthur Reis em seu livro “História do Amazonas”, 12.587 africanos foram colocados à venda em Belém pela Companhia Geral do Comércio do Grão Pará e Maranhão. Por mais de cem anos, outros milhares continuaram sendo trazidos totalizando, segundo historiadores, mais de 60 mil até o final da escravidão no Estado, em 1884.
Quem conta melhor essa, e outras histórias, é Ygor Olinto Rocha Cavalcante, historiador e professor do Ifam (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – campus Coari), mestre em História Social da Amazônia pela Ufam, premiado em 2010 no Concurso Nacional de Monografias e Dissertações sobre Cultura Afro-Brasileira pela Fundação Palmares e Ministério da Educação e da Cultura, e que está prestes a lançar o livro “Uma viva e permanente ameaça”.

Jornal do Commercio: Por que seu livro tem esse título de “Uma viva e permanente ameaça”?
Ygor Olinto: O título é uma referência ao desabafo do etnólogo do século 19 Lourenço Amazonas que, assustado com a dimensão rebelde das fugas dos escravizados, alertava aos fazendeiros e políticos da região a “viva e permanente ameaça” que as fugas e as comunidades de fugitivos representavam para a expansão da economia regional. Essas comunidades significavam a possibilidade de viver de outra maneira, fora dos quadros da escravidão e suas violências.

JC: Qual período seu livro aborda e onde conseguiu as informações, em jornais da época, documentos?
YO: O livro, lançado pela Paco Editorial, narra as histórias de fugitivos e rebeldes de meados do seculo 19 até o final da década de 1880, exatamente o período da escravidão aqui na Amazônia. Essas trajetórias foram encontradas em diversos documentos: livros da administração pública, processos crimes, relatos de viagem, jornais e livros paroquiais. A diversidade de fontes talvez seja o melhor do livro.

JC: A Amazônia, e mais especificamente o Amazonas, receberam aproximadamente quantos escravos? Onde eles eram utilizados?
YO: Durante a vigência da legalidade da escravidão, os especialistas nos informam que quase 60 mil pessoas foram traficadas para a Amazônia. O perfil da escravidão no Amazonas é de execução de trabalhos urbanos, especialmente no que se refere a tarefas domésticas. Assim, seja na capital ou no interior, os espaços urbanos estavam atravessados pela cultura dos escravizados. Porém, não se pode menosprezar a atuação desses homens e mulheres escravizados nos trabalhos do campo.

JC: Escravos eram um “produto” caro, por isso, só adquiridos por quem tinha muito dinheiro.
YO: De fato, os senhores são as grandes fortunas da época, e a maior parte da classe senhorial amazonense é dona de poucos escravos. Contudo, havia uma prática relevante de aluguel de escravos, o que permitia, na prática, que muitos cidadãos no Amazonas vivenciassem a experiência de ser donos de escravos. Dessa forma, os costumes e as relações de trabalho baseados na escravidão eram irradiados de alto a baixo na sociedade amazonense, e estruturavam as relações e a cultura do trabalho na época. E, obviamente, os parâmetros da instituição escravista permanecem ainda hoje pautando nosso olhar.

JC: Os escravos do Amazonas sofriam maus tratos como os escravos de outras cidades do país?
YO: Sem dúvida. E a perseguição policial pautava-se pelos mesmos pressupostos instituídos pela Polícia da Corte, que dizia: todo preto ou pardo (e no Amazonas essas classificações admitem marcações mais amplas e curiosas como “mulato-alvacento-atapuidado”) é escravo até que se prove o contrário. Há histórias interessantes, como o dia em que derrubam o pelourinho da cidade, marca do poder e da justiça imperial, no contexto de aumento das prisões contra negros e índios. Além das fugas como represálias aos senhores mais violentos.

JC: Com o fim da escravidão no Amazonas (por sinal, quatro anos antes do resto do país), os ex- escravos daqui foram marginalizados, como no Rio de Janeiro, por exemplo?
YO: Esse período, do pós-escravidão, ainda carece de maiores estudos. Como diria Arthur Reis, essa história ainda não foi contada.

JC: Alguma das histórias que você pesquisou chegou a lhe emocionar?
YO: As fugas em família sempre me emocionam porque, atravessando mais de um século, e toda a alteridade que nos separa daqueles homens e daquelas mulheres, recuperamos o que mais lhes importava: os laços e os afetos com os seus iguais. Fugir para reencontrar um filho, uma irmã, um amor, para proteger os filhos, enfim, eis ali uma luta pela humanidade.

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
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