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“A história do ‘x’ já está superada” diz Pablo Jamilk

Nos últimos tempos a linguagem neutra de gênero vem sendo palco de grandes discussões, debatida por escolas, políticos, pessoas conservadoras, ativistas das causas LGBTQIA+, professores e linguistas. O Jornal do Commercio ouviu Pablo Jamilk, doutor em letras, que acaba de lançar o livro ‘Linguagem neutra de gênero – um debate necessário’, com um extenso estudo sobre a linguagem neutra, embasado na teoria linguística e em estudos pessoais relativos à cognição e à neurociência. 

Jornal do Commercio: Quem foi a pessoa, e quando, que começou com essa história de linguagem neutra?

Pablo Jamilk: A história da linguagem neutra de gênero não é nenhuma novidade no mundo. Nós já tivemos em outros países, tentativas semelhantes de neutralizar a noção de gênero nas línguas. Algumas de forma mais inteligente, outras (como é o caso da proposta atual no português) de forma apressada e incipiente. Na década de 1960, houve a tentativa na Suécia de se criar um pronome específico apenas para designar a comunidade não-binária, mas a adesão por parte dos suecos foi ínfima e o registro do pronome ficou para memória e circula entre alguns grupos como forma de gíria. No Brasil, essa iniciativa começou a ganhar força, depois de um professor de biologia ganhar popularidade por ter substituído a vogal temática da palavra ‘aluno’ por um X em uma prova, como se isso fosse neutralizar o gênero biopsicossocial, que nada tem a ver com o gênero gramatical. Como esse fato ganhou repercussão, todo mundo que tinha alguma identificação com a proposta foi buscar uma maneira de fazer a sua ‘linguística freestyle’ em vez de saber que em português o gênero neutro é o que se convencionou chamar de masculino.

JC: Essa questão de quererem uma mudança tão radical na língua portuguesa já teve algo semelhante no decorrer das mudanças que nosso idioma teve desde a chegada de Cabral?

PJ: Toda língua natural é viva e suscetível a mudanças, mas nenhuma mudança é ostensivamente condicionada, ou seja, nada pode ser alterado em uma língua simplesmente porque uma pessoa não gosta de alguma expressão ou de alguma maneira como determinado mecanismo linguístico funciona. Existem princípios que regem inclusive a mudança na língua e como ela ocorre. Esses princípios também são naturais e obedecem a uma lógica da língua. Dessa forma, nunca ocorreu algo parecido com o português.

JC: Todas as mudanças realizadas na língua portuguesa foram debatidas durante anos. Por que agora querem impor esse ‘x’ na questão de uma forma abrupta?

PJ: A história do ‘x’ já está superada, porque se trata de uma alteração capacitista. Colocar o ‘x’ no lugar das vogais temáticas impede que qualquer pessoa cega possa ter acesso ao texto escrito por meio de um software de leitura ou mesmo na transcrição em Braille. Isso também exclui pessoas com dislexia, autismo ou que possuam uma disfunção cognitiva associada à leitura.

JC: Tal utilização do ‘x’ na língua portuguesa só seria interessante para um grupo de radicais?

PJ: Eu não vejo como uma ação de um grupo de radicais. Eu vejo como a ação de um grupo que entende pouco, ou quase nada, a respeito de estrutura de língua. Gênero biopsicossocial não é o mesmo que gênero gramatical. Como já mencionei anteriormente, existe o neutro em língua portuguesa, afinal isso foi herança do latim, língua da qual o português evoluiu. Infelizmente, a forma como se ensinou durante anos fez com que os alunos acreditassem que ‘o’ é masculino e ‘a’ é feminino, entretanto isso é uma redução que se faz na escola para não ter de explicar ao cidadão que a nomenclatura deveria ser substantivo marcado em gênero (feminino) e substantivo não marcado em gênero (neutro). Dessa forma, eu vejo que se trata de um problema de falta de conhecimento a respeito da própria língua.

JC: No mundo existem grupos querendo esse tipo de alteração em suas respectivas línguas, ou isso é um fenômeno brasileiro?

PJ: Sim, há tentativas de emprego de terminologia neutra específica em outras línguas, como no inglês ou no espanhol, mas nenhuma traz tanta alteração na base da língua quanto essa proposta que se descortinou no Brasil.

JC: Na sua opinião, onde essa situação vai parar já que até escolas já estão ensinando a linguagem neutra?

PJ: Durante algum tempo vai gerar muita chateação entre as pessoas, porque a pauta foi politizada. Se não houvesse passado por esse processo, sequer estaria sendo discutida na sociedade, uma vez que se trata de algo que se chama ‘variação linguística diastrática’, ou seja, uma parte da comunidade que se identifica com essa maneira de tentar se exprimir vai usar essa linguagem entre si. As marcas vão lucrar com produtos direcionados, iludindo o povo com falsa preocupação social, mas isso não poderá se transformar em sistema. A explicação é simples: uma mudança linguística deve ser natural. Primeiro ela ocorre na linguagem, depois os gramáticos sistematizam essa mudança diacrônica em manuais. Para se ter uma ideia, o último acordo ortográfico foi proposto em 1986, mas só ‘entrou em vigor’ para fins documentais em 2016. Os professores que estão tentando ensinar esse tipo de variação devem, antes de qualquer coisa, entender que se trata de uma variação, não de uma norma.

JC: Fale sobre seu livro ‘Linguagem neutra de gênero – um debate necessário’.

PJ: Meu livro traz o histórico dessa discussão, bem como diversos esclarecimentos a respeito dessa questão. Um deles, por exemplo, é que essa iniciativa não pode ser atribuída à comunidade LGBTQIA+ em sua totalidade, porque há uma grande parcela dessa comunidade que sequer aceita essa modalidade de tentativa de expressão. No livro, também se discute as bases da língua, o que é gênero gramatical, como essa discussão deve necessariamente observar o que já existe no idioma. Apresento os problemas capacitistas dessa iniciativa. Trago o ponto de vista de quem deseja um sistema não-binário do idioma, mostro que há idiomas não-binários que não influenciam em questões de gênero biopsicossocial. Enfim, o livro se direciona a leigos, pesquisadores, professores e a qualquer um que deseje discutir o assunto em questão.

Foto/Destaque: Divulgação

Evaldo Ferreira

é repórter do Jornal do Commercio
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