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A arte do sofrimento de um povo

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            Um dia o casal Darwin Darinson e René Maria Rangel chegou para mais um dia de trabalho em sua galeria de artes Museum, localizada num prédio do governo federal, no centro de Caracas, e as portas estavam lacradas. Um funcionário do governo apareceu e disse que o governo da Venezuela havia avaliado e estava comprando a loja de Darwin e René por cem dólares, com tudo dentro, em nome da República Bolivariana da Venezuela.

            “Já tínhamos a loja há 15 anos. Ganhávamos e vivíamos muito bem com o nosso trabalho mas, de uma hora para outra, o governo de Hugo Chávez nos tirou tudo”, falou Darwin.

            “Eu me formei em psicologia, em 1998, mas nunca consegui emprego nessa área porque desde que o Chávez assumiu o poder, em 1999, as coisas começaram a ficar difíceis na Venezuela. A René trabalhava administrando uma pousada, quando a conheci e resolvemos abrir a galeria”, contou.

            “Apesar de nunca ter estudado artes em nenhuma escola, aprendi a desenhar e pintar ainda criança, sozinho. A René aprendeu comigo, quando já estava com 35 anos. Na Museum vendíamos os meus quadros e os dela”, falou.

            Antes de montarem sua galeria, Darwin e René chegaram a fazer um tour por Colômbia, México e Panamá. “Passávamos só alguns meses em cada país e conseguíamos viver somente da venda dos quadros que pintávamos. A René é venezuelana, de Merida, eu sou peruano, mas já vivia há mais tempo na Venezuela, em Maracaibo. Foi muito difícil perder nosso local de trabalho e nossa fonte de renda, mas foi fácil juntar o pouco que ainda tínhamos e deixar para trás a Venezuela. Está insustentável viver naquele país”, lamentou.

 

            Apenas cópias

            Em 2015 o casal, como milhares de outros compatriotas seus, rumaram para Boa Vista. “Sequer conseguimos pegar nossos passaportes. Saímos fugidos de nosso país e considerados inimigos do governo. Se voltarmos para lá poderemos ser mortos porque é o que está acontecendo com quem ainda não fugiu e é contra o regime”, lembrou.

            Mesmo estando há três anos no Brasil, diferente de Darwin, René continua a ter dificuldades com o idioma português. “Ficamos oito meses em Boa Vista. Mas lá não tem galerias de arte e vender nossos quadros era difícil. A coisa ficou ruim. Foi quando resolvemos arriscar vir para Manaus, ainda em 2015”, disse Darwin.

            “Continuamos a pintar nossos quadros e anunciar no Face e na OLX, e é como temos conseguido vendê-los. Há quatro meses a René resolveu também expor os quadros na rua e passou a ocupar a calçada de uma das ruas principais do conjunto Eldorado”, falou.

            O casal ocupa uma quitinete na Chapada, apinhada com seus apetrechos de trabalho, quadros e mais quadros, madeiras e ferramentas. Darwin faz as próprias telas que depois serão transformadas numa obra de arte.

            “Eu e a René somos artistas, mas hoje estamos tendo que pintar nossos quadros para sobreviver. A maioria de nossos trabalhos, de agora, não são obras de arte, mas apenas cópias que reproduzimos porque vendem rápido. Esse rosto de Jesus, por exemplo, é o que mais faço e quantos colocamos à venda, são comprados. Se eu for parar para fazer uma obra, poderei levar meses e as pessoas não irão querer pagar o valor real. Uma cópia eu faço em menos de meia hora e vendo por R$ 50, R$ 100, rapidamente”, explicou.

 

            Venezuela nunca mais

            “Eu fiz um quadro bonito, do Teatro Amazonas, aquele sim, uma obra de arte. O dono de uma galeria me pagou R$ 100, e fiquei sabendo que ele depois revendeu por R$ 1.000”, reclamou.

            “Como nossa vida é trabalhar, praticamente não conhecemos ninguém aqui em Manaus. Eu fico oferecendo os quadros na internet, saio pra comprar as madeiras e o tecido para as telas, e as tintas, depois desenhar e pintar quadro atrás de quadro. A René, quando não está na rua, também está pintando”, revelou.

            “Estou acostumado. Há 20 anos morei em São Paulo. O dono de uma galeria me ‘contratou’ para pintar quadros para ele. Eu ficava o dia inteiro dentro de um quarto pintando quadros”, lembrou.

            “Vendemos uma média de um a dois quadros por dia, com valores de R$ 50, e R$ 100, mas acontece, às vezes, de ficarmos sem dinheiro. Também sei fazer esculturas, trabalhar com serigrafia e xilogravura”, disse. “Qual o estilo da nossa pintura? Diria que é o estilo do sofrimento de um povo. Retrato nosso sofrimento”, afirmou.

            “Nossa idéia é ficar mais um ano em Manaus e depois seguir para Salvador e depois São Paulo que, como disse antes, eu conheço, ainda que de dentro de um quarto. Não iremos atrás de aventuras. Iremos atrás de galerias e compradores para os nosso trabalhos, mas como obras de arte. Queremos fazer obras de arte, e não apenas cópias”, avisou.

            “Voltar para a Venezuela, nunca mais. Lá existem tantas pessoas corruptas e corrompidas que, ainda que Maduro caia do poder, outro corrupto surgirá em seu lugar e as coisas continuarão como estão”, lastimou.                

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.
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