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412 mil… que não seja em vão!

Apesar do empreendedorismo ter sido sempre o foco dessa coluna, hoje eu não vou falar sobre isso. Eu gostaria de falar sobre algo pessoal e que sem, dúvida, também já afetou a vida de vocês de alguma forma. Esses dias eu li que um luto envolve diretamente nove pessoas do convívio do falecido. Seguindo essa ideia, nós temos hoje três milhões e seiscentos mil pessoas impactadas diretamente com a morte de um ente querido. São mais de quatrocentas mil mortes por covid-19 no Brasil e apesar de nunca ter tido a intenção de transformar minha coluna em um mural de homenagem póstumas, depois de um mês sem escrever, apenas experimentando a falta de criatividade ocasionada pela minha mais forte perda, eu decidi que precisava falar sobre meu irmão Daniel Tiago Omena Melo. Na verdade, gostaria de publicar em formato “carta aberta”, o desabafo da minha mãe ao relatar o que muitos tem sentido neste período de perdas irreparáveis ocasionadas pela pandemia.

Em primeiro lugar peço permissão para falar sobre meu filho privilegiando meus sentimentos de mãe. Nesses dias de extrema agonia pela qual nós passamos, mãe, foi só o que eu fui: a que via a cada dia a vida dele se acabar, sem poder retê-la, sem poder parar o tempo para evitar o inexorável desfecho. Não sou a única mãe a ter perdido um filho nessa pandemia. Posso imaginar quantas outras mulheres entre as mais de quase quatrocentos e dez mil de mortes no Brasil, foram atingidas por essa perda. A saudade definida por Chico Buarque como “o revés do parto” que sinto é indescritível, mas a revolta pela consciência de que tem um responsável por toda essa tragédia, torna essa dor infinitamente maior. E é assim que vou tentando sobreviver ao quarto vazio, a cama que nunca mais foi preciso ser arrumada, ao lugar na mesa que nunca mais será ocupado.
Tiago demorou a escolher a profissão que queria ter na vida, até descobrir a Geografia. Conversando sobre o curso superior que gostaria de seguir, ele me disse que gostava de fenômenos da natureza, que tinha interesse em ler sobre vulcões e se preocupava com o meio ambiente. Com essas informações fomos para o computador pegar ementas de cursos para que ele analisasse. Foi quando ele compreendeu o que era ser um Geógrafo.
Entrou na faculdade e realmente se dedicou. Foi um aluno aplicado. Tinha especial interesse pelos problemas urbanos, lamentava a situação dos igarapés e foi participante voluntário em diversos grupos que nos fins de semana saiam para retirar lixos das águas.
Depois de completar vinte anos fez excursões por vários países da Europa e em suas fotos de viagem registrava de modo particular em suas fotos sempre a temática urbana. Não o aspecto turístico somente, mas curiosidades que ele percebia no planejamento das cidades, que previlegiavam na preferência de circulação pelo pedestre, pelos ciclistas, pelos cadeirantes e na eficiência do transporte público. Em grandes centros como Paris, Londres, Lisboa, Dublin, Amsterdã, Milão, Bruxelas, Tiago descobriu o urbano humano, percebeu que a cidade devia servir as pessoas, e sendo ao mesmo tempo elas podiam ser limpas, coloridas e com mobiliários próprios mobiliadas. Sim, a cidade não as máquinas. Dessas viagens surgiram duas exposições fotográficas, uma delas teve lugar na faculdade, a quem ele doou todo o material.
Em 2013, a Semulsp estava se estruturando, precisavam de alguém com conhecimento em geoprocessamento. O nome dele foi lembrado, e indicado para trabalhar pela secretaria da época, Sra. Suely D´Araújo, com quem ficou alguns meses se familiarizando com a desafio que era gerir a limpeza urbana de um município como Manaus.
Porém, foi trabalhando junto ao secretário, Sr. Paulo Farias, que começaram a dinamizar os problemas de saneamento básico que Manaus enfrentava. Estimulado pelo chefe, Tiago estava sempre disposto, sentia-se realizado com o trabalho que vinha desenvolvendo e nele se envolvia cada vez mais. O Tiago profissional, era o homem de caráter e princípios, um “jovem diferenciado, agregador e construtivo”, como o definiu para mim seu chefe por longos anos na Semulsp.
O máximo do reconhecimento veio no ano passado quando foi indicado a participar de um projeto sobre Resíduo Solido Urbano desenvolvido pela ABRELPE – Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais e pela Agência Suecade Meio Ambiente. A intensão era envolver jovens do país todo. Meu filho teria, além da oportunidade de integrar fazer parte de uma rede internacional de profissionais, mantendo fazer contato com representantes de outros estados, trocando informações sobre os conheceria os desafios apresentados e as soluções encontradas na implementação do projeto nas cidades brasileiras. As trocas de experiências expressas nas reuniões, seriam o norteador das decisões que beneficiariam os municípios.
A primeira viagem seria para São Paulo, no mês de agosto, a segunda seria em Brasília, no mês de outubro. E a última, para o encerramento, na cidade de Estocolmo na Suécia, prevista para o mês de dezembro. Devido aos transtornos, a viagem para São Paulo ocorreu no início deste ano, momento em que ele expôs seu trabalho e narrou sua experiência na implementação do projeto em Manaus. Retornou encantado com os contatos que fizera, com as trocas profissionais vivenciadas. Brasília e Estocolmo estavam dependendo do controle da pandemia.
Todos esses sonhos começaram a ruir no dia 06 de março quando a noitinha o ouvi tossir. A covid invadira minha casa. Não vou detalhar o que seguiu, porque tenho certeza varias pessoas se identificarão com significado da frase “a covid invadiu minha casa”. Preciso dizer que imediatamente ele teve acesso ao tratamento adequado. Tiago não passou um momento sem acompanhamento médico, até a internação no dia 09/03. E a partir daí foi só declínio. Os cuidados do hospital eram constantes, todos os dias tínhamos boletins que dividamos com médicos conhecidos que aprovavam o modo como ele estava sendo tratado. Porém, o pulmão não reagia. Jovem, saudável, sem comorbidades, mas os pulmões não conseguiam se fortalezar para que meu filho tivesse forças para atacar outras doenças oportunistas que fatalmente acometeriam.
Tiago perdeu a luta no final da manhã de sexta-feira, dia dois de abril. De mim, foi arrancado o companheiro que passou 39 anos ao meu lado e sob meus cuidados. Revolta, sentimento de injustiça, e tudo o que uma mãe sente quando perde seu amado filho. Porém com o agravante da minha certeza de ela poderia ser evitada, a clareza que Tiagose foi antes da hora, a nítida consciência de que meu filho como tantos brasileiros de marco de 2020 para cá, foi assassinados. Deixou pai e a irmã, parceira e cumplice. E avós, tios, primos e uma legião de amigos. Em mim uma revolta difícil de mensurar, uma realidade ainda impossível de enfrentar. Uma saudade que4 me tortura todos os dias quando penso em falar e sei que não posso mais.
Tiago meu filho amado, tu vais estar perto de mim na minha lembrança e na minha saudade, até o dia da minha partida. A discrição, a paciência, o bom humor, a generosidade, e o companheirismo. A certeza desse encontro é o que me fará ficar por aqui, aguardando o dia em que vou encontrá-lo novamente. E vou continuar te amando, como o pedaço de mim que tu és, como a minha descendência, como a obra mais preciosa que me foi permitido realizar. Mãe.

Quem conseguiu se curar vai seguir a vida, quem se vacinou vai seguir a vida e toda vez que a saudade mandar lembranças, ela vai dizer: “Faltava muito pouco tempo para ele ser vacinado”. E a gente vai superar, vai ficar mais leve, mas nunca vai deixar de lamentar que faltava tão pouco.

Foto/Destaque: Divulgação

Raquel Omena

é especialista em negócios digitais, editora da coluna Mais Empresárias
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