14 de outubro de 2024

Mas não é sempre não

Às vezes tu conhece gente séria, que que te põe a pensar em coisas que não costumavam ocupar espaço na cabeça. “Sabe fulano, aquele explorador da era vitoriana?” “Eita não”. “Pera, te conto”. “Tem a China e o Tibet, lembra?” “Como foi mesmo?” “Foi assim”. “Olhando por esse ângulo, o fio de cabelo do último dedinho do pé do apêndice da questão XYZ está relacionado com aquilo que conversamos semana passada”. Pode ser até que dê um medinho de não conseguir acompanhar o raciocínio, mas se o alguém for generoso e se encontrar do outro lado um outro alguém disposto a dividir também suas especificidades, é o tipo de encontro que amplia a vida.

Às vezes tu conhece gente viva, que que te põe a fazer o que teus amigo juram que não combina mais com teus quase 50 anos. Gente que no meio de um jantar, te convida pra dançar num lugar escuro de som muito bom e muito alto. Tu meio com roupa de jantar. Gente que quando a luz do lugar dá uma piscada mais forte, tu vê sorrindo de olho fechado, quase pulando ao som da música, sabe? Gente que corre mais do que tu, que treina mais do que tu e que sabe fazer curva na bicicleta que tu só anda reto no Minhocão que eu sei. Pode ser até que dê um medinho de ser uma tentativa de impressionar, mas se o alguém for todo consistência, é o tipo de encontro que amplia a vida.

Às vezes tu conhece gente delicada, que que te põe a sentir o que não costumava se espalhar nos espaços vazios de dentro do peito. É um povo que te dá vontade de ler mais poesia, sabe? Ou melhor, que dá até vontade de escrever poesia. Um povo que presta atenção em uma música, coloca a mão no peito e faz uma careta antes de soltar um “mas isso é lindo de morrer”. Um povo que tu convida a ir no teu museu na cidade e fica à vontade pra dizer que a Pinacoteca de São Paulo é o “teu museu na cidade”, e tua obra é essa aqui. Um povo que escuta essa doidice, leva a sério e depois quer te leva no museu que chama de seu, sabe? Pode ser até que dê um medinho de ser muito, mas se o alguém num dia qualquer lembrar da tua poesia, da tua obra e do que te faz soltar um “lindo de morrer”, é o tipo de encontro que amplia a vida.

Às vezes tu conhece gente galhofenta, que que te põe a ter um ataque de riso porque a moça do Casamento às cegas Inglaterra de um beijo de batom vermelho no pretendente e o cara ficou machíssimo se declarando só que de batom . Gente que topa assistir contigo Casamento às cegas Inglaterra, e Brasil. Que se engasga assistindo comédia. E que passa de um vídeo de arte contemporânea pra um do Sargento Peçanha com o mesmo nível de entrega. Pode ser até que dê um medo grande, mas se o alguém for esses todos ao mesmo tempo, é o tipo de encontro que amplia a vida.

 

*Roberta D’Albuquerque é psicanalista, atende em seu consultório em São Paulo e escreve semanalmente no Jornal do Comércio e em outros 17 jornais e revistas do Brasil, EUA e Canadá

Redação

Jornal mais tradicional do Estado do Amazonas, em atividade desde 1904 de forma contínua.

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