19 de setembro de 2024

Vícios privados, tragédias públicas

A Filosofia Moral do século XVII teve em Bernard de Mandeville um dos seus expoentes mais pródigos. O autor da Fábula das Abelhas, ou Vícios Privados, Benefícios Públicos introduziu um axioma louvável: o vício, algo deplorável por todos, pode ser convertido em virtude se assim, como causa, tornar-se um benefício para toda a coletividade.

A lógica mandevilliana é objetiva, clara e implacável: os vícios humanos são inevitáveis – todos estão expostos à tentação e ao vício –, mas os vícios privados não podem se estender por todo o tecido social, pois podem se transformar em desordem coletiva.

Ombreado com pensadores dos quilates de Adam Smith, Thomas Hobbes ou Nicolau Maquiavel, Mandeville evidencia o relevante papel do indivíduo na trama social de seu tempo.

Em outras palavras, “vícios privados, benefícios públicos” porque o vício pode e deve ser inteligentemente segregado, insulado e apartado de todo o conjunto da coletividade, evitando assim a degradação coletiva. O vício pode ser controlado, mas nunca eliminado.

Este dilema mandevilliano nasceu em pleno no século XVII, o século de ouro da Holanda no mundo. Amsterdã torna-se a capital comercial do mundo, onde navios de todas as nações aportam para dar entrada e saída das mercadorias pelos portos de Amsterdã.

O cosmopolitismo do capitalismo mercantil torna-se um imperativo global. Trabalhadores do mar dos mais diferentes recantos da terra aportam em Amsterdã e passam a conviver com a população local. Trazem consigo, obviamente, os seus vícios para a capital comercial. Sem controle ou regulação, Amsterdã virou uma anarquia urbana: beberrões, ladrões, moradores de rua e prostíbulos se multiplicam por toda a cidade.

Mandeville teoriza uma solução prática: conter por meio de um cordão sanitário moral parte da cidade – em especial, a região portuária –, a fim de restringir um espaço da cidade dedicado à extravagância e aos prazeres.

Amsterdã, ainda hoje, é um exemplo desta política. Consumidores de drogas e prostíbulos estão circunscritos a uma zona específica, o que contribui para livrar a cidade dos males sociais decorrentes dos vícios privados.

A Cracolândia paulista era, improvisadamente, uma solução mandevilliana. Concentrar numa rua aqueles dependentes químicos que buscam a droga diariamente, e os traficantes que vendem o produto.

Uma solução maligna, mas que concentrava num único espaço – e não em toda a cidade – aquela legião de zumbis do crack.

Ao remover os viciados e traficantes daquele reduto, eles foram naturalmente, como uma manada, para outros lugares – uns para consumir, outros para vender crack. O resultado prático foi a distribuição do consumo e do tráfico por toda a região do entorno da Cracolândia.         

Prostituição em Amsterdã, a Lei Seca nos Estados Unidos e a Cracolândia em São Paulo são exemplos de tentativas malfadadas de controle governamental sobre os vícios da população. Tentativas estas em que os “vícios privados” acabam se transformando em tragédias públicas. 

A percepção de Mandeville deixou um importante legado para uma vasta geração de economistas, políticos e filósofos sociais. Não só para aqueles, mas para os que formulam e aplicam políticas públicas objetivando a sua eficácia. 

Breno Rodrigo

É cientista político e professor de política internacional do diplô MANAUS. E-mail: [email protected]

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