E a “menina” (Fenômeno La Niña – período climático de muita precipitação no território amazônico relacionado às temperaturas do Oceano Pacífico) chorou muito e as muitas chuvas nos proporcionam a grandeza da maior cheia histórica (30,02 m).
Conhecer o Ciclo das Águas, monitorar e respeitá-lo é um exercício diário de competência, que deveria estar pavimentado na gestão pública do tema.
Por vivermos na Amazônia, isso é mais claro. As cheias e vazantes trazem consequências às populações urbanas e rurais, notadamente as mais pobres, evidenciando que nesse território de dimensões continentais, as águas nos governam, não nós a elas.
O Amazonas perdeu muito de sua capacidade de governança institucional com a reforma administrativa efetuada em 2015, além da corrupção, que levou um governador a prisão.
Que um governo precisa ser enxuto, administrativamente, estamos todos de acordo. Mas, temas estratégicos como ciência & tecnologia, recursos hídricos, mineração, entre outros… mereciam melhor tratamento.
Com a extinção de algumas secretarias, orçamentos públicos e agendas políticas foram pulverizadas, entre elas, a pasta dedicada à gestão dos recursos hídricos.
Desculpe o trocadilho, o Amazonas está à deriva desde então.
Perdemos, em essência, a capacidade de entender e aplicar estratégicas e mecanismos de defesa às principais calhas dos rios.
Deixamos de nos comprometer com orçamentos públicos dedicados ao monitoramento da qualidade das águas, àquelas que matam a sede das florestas, dos pescados e das nossas populações, mesmo as mais isoladas.
Não dedicamos os olhares atentos aos custos do tratamento e abastecimento das cidades e comunidades rurais, do uso da água em processos industriais e produtivos.
O Amazonas permanece órfão de um órgão que cuide dos recursos hídricos. Esta precariedade estrutural, ora vivenciada, que se soma às dificuldades ao enfrentamento dos crimes ambientais, nos coloca, a todos, num barco sem quilha.
Por mais brilhantes que sejam representantes e gestores ao leme, a ausência de uma estrutura responsável pela gestão das águas no Estado – uma espécie de “coluna vertebral” – distancia a nau Amazonas de um porto seguro.
Perdemos credibilidade junto à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, por escolhas político-administrativas equivocadas, péssimos indicadores de metas alcançadas e mau uso de recursos federais recebidos.
Quem paga essa conta?
Muitas fotos registraram belas imagens dos prédios históricos, do relógio, dos bancos, da Praça da Matriz, das avenidas centrais e suas passarelas alagadas pelo rio Negro.
Contudo, não refletiam, ou retratavam o cheiro do esgoto sem tratamento, os bueiros submersos entupidos pelo lixo dos cidadãos, as doenças invisíveis e oportunistas de veiculação hídrica (leptospirose, diarreia…).
Manaus e o Amazonas não têm cuidado das suas águas como deveriam, tampouco das suas pobres “populações anfíbias”.
Não se pode dizer que não sabíamos com antecedência da magnitude da cheia neste ano. Mesmo assim, ouvimos relatos de improvisações, perdas e invisibilidade das populações ribeirinhas afetadas.
Parecem reféns das migalhas assistencialistas do poder público, sem madeira para subir as marombas, dependentes da chegada de uma “bolsa cheia do ano…”.
Visitei Cacau-Pirêra e o descaso das autoridades municipal e estadual com o Distrito merece ressalto. Segundo o IBGE, ali vivem mais de 11 mil habitantes.
Vi a calamidade de todo um bairro que se instalou, espontaneamente, nas várzeas do rio Negro, distantes da sede de Iranduba, próximos ao porto que recebia as balsas de travessia. Tornaram-se periferias dos impactos da ponte.
Mereciam e merecem as populações e aquele local um olhar urbanístico integrado ao regime das águas e à vocação turística pela visão privilegiada do rio e da frente de Manaus.
Parece, infelizmente, que o destino escolhido pelas autoridades municipais e estaduais é o abandono, semelhante ao projeto da cidade universitária que se deteriora pela ação do tempo.
Uma pena! São áreas tão nobres de uma metrópole mal assistida que pouco se parece com a sonhada “Veneza dos Trópicos”.
Quem caminha nas ciclovias e passeios respira o fedor do desrespeito social e público aos igarapés da rica capital amazonense, represados pela cheia, sangrando, quase defuntos.
Todo o desenvolvimento econômico alcançado pela Zona Franca de Manaus não cuidou das águas. Os atuais indicadores pífios de saneamento de Manaus e do Amazonas registram o nosso descaso público e privado.
O que se tornaram os nossos balneários?
Cheios de nossos restos, a morte deles representa a derrota coletiva de uma sociedade e suas autoridades que esqueceram as nossas origens ribeirinhas e valores culturais apreendidos na vivência com as águas.
Espera-se que os prazos impostos aos municípios e estados federativos a partir da aprovação do novo marco regulatório de saneamento pelo Congresso Nacional (Lei Federal 14.026, de 15 de julho de 2020) promovam os reajustes necessários aos órgãos e entes públicos e privados, no interesse comum da promoção de saúde e qualidade de vida.
A Metrópole e seus igarapés merecem mais do nosso carinho.
Se o turismo é uma de nossas vocações econômicas amazônicas, Manaus, para se tornar a “Veneza dos Trópicos”, deve se permitir cuidar das águas com o mesmo desejo que aquela cidade italiana acolhe seus visitantes.
E o Amazonas, deveria respeitar o seu papel federativo de tutor do maior patrimônio mineral brasileiro presente em seu território, nossos recursos hídricos.