O artigo aborda sobre Sócrates e relatórios que apontam retrocessos no combate à corrupção em pleno governo loteado de pastores e militares das Forças Armadas.
Apesar de não ter escrito nada, Sócrates é um dos pensadores mais conhecidos da humanidade. Seu legado ficou conhecido por conta dos escritos de seus discípulos, graças à sua postura de ensinar as pessoas a pensar, o que incomodou muitos poderosos de sua época.
Um exemplo disso, é o diálogo escrito por Platão que foi chamado de “Criton”, ou o Dever, o qual acontece na prisão, após Sócrates ter sido condenado à morte em Atenas e seu amigo Criton ter tentado persuadi-lo de fugir da prisão com possibilidade de receber ajuda dos guardas por meio de subornos. Apesar de Sócrates considerar infundada a sua condenação, ele acreditava que era preferível sofrer uma injustiça a cometer algo injusto, razão pela qual considerou inadmissível seus amigos cometerem algo ilícito para ajudá-lo, uma lição da antiguidade sobre como uma pessoa ética deveria responder a qualquer tentativa de corrupção.
Em 09/12 foi o dia internacional anticorrupção, data passada desapercebida por nossas autoridades, razão pela qual o artigo da semana passada apontou que o combate à corrupção piorou em um governo eleito justamente para fazer o contrário.
Para ter a dimensão do quanto regredimos, basta estudar dois relatórios publicados em out/20 pela Transparência Internacional <https://bit.ly/2VRBPXP> e que foram enviados para a Divisão Anticorrupção e ao Grupo de Trabalho Antissuborno da OCDE, os quais apontam os retrocessos e a grave situação do Brasil em relação ao combate à corrupção. Vejamos a síntese dos relatórios:
R1) Exporting Corruption 2020 com 189 páginas
Este relatório é publicado há 15 anos e avalia o desempenho de 47 países exportadores, dos quais 43 são signatários da Convenção Antissuborno da OCDE. O documento compara os países por sua capacidade de seguir as regras da convenção para investigar e punir casos de corrupção transnacional.
A versão de 2020 compara a aplicação dessas regras entre 2016 e 2019 e classifica cada país em 4 categorias: Ativo, Moderado, Limitado, Pouca ou Nenhuma Aplicação. EUA, Reino Unido, Suíça e Israel foram considerados os mais exemplares, Ativos, enquanto que o Brasil, responsável por apenas 1% das exportações globais, foi considerado Moderado, com 24 investigações iniciadas, sem abrir nenhum novo caso com sanções.
Os casos mais emblemáticos são: a) Embraer com pagamento de subornos para autoridades na Arábia Saudita, Moçambique, Índia e República Dominicana; b) Asperbras acusada de pagar subornos para o filho do Presidente da República do Congo; c) o pior caso é o da Odebrecht, acusada de pagar subornos para agentes de 12 países envolvidos em mais de cem projetos; d) e outras construtoras (Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Engevix/Nova Participações, OAS, Queiroz Galvão e UTC) denunciadas pela Operação Lava Jato.
Na página 42 deste relatório há uma lista de retrocessos no âmbito jurídico e institucional anticorrupção no Brasil em 2019 e em 2020, os quais ameaçam os esforços para combater a corrupção na nação, tais como:
Retrocesso 1) Presidente Jair Bolsonaro supostamente exerceu interferência política praticamente em quase todos os órgãos anticorrupção, dando como exemplo, casos acontecidos no MPF e na RF (COAF);
Retrocesso 2) Introdução da Lei de Abuso de Autoridade em 2019, a qual tem o potencial de dissuadir investigadores, promotores e juízes de avançar em casos que envolvem atores poderosos do setor público e privado;
Retrocesso 3) a promulgação da Lei Anti-Crime em dez/19. Em relação ao suborno estrangeiro, a lei ficou muito aquém para o país seguir as regras da OCDE. Além disso, a inserção do Juiz de Instrução pode resultar em processos judiciais mais lentos e caros;
Retrocesso 4) mudança recente no Brasil sobre a prisão na 2a instância. A decisão do STF de proibir a prisão antes que todos os recursos tenham sido esgotados provavelmente agravará a impunidade dos crimes de colarinho branco.
Entre as recomendações de melhorias pode-se citar: a) melhorar a transparência e a publicação de decisões e acordos de leniência, incluindo seus anexos, especialmente em casos que envolvem suborno internacional e lavagem de dinheiro; b) adotar e implementar projeto de lei relacionado à proteção de denunciantes, incluída no Pacote de Medidas contra a Corrupção; c) garantir a independência e autonomia de órgãos anticorrupção, incluindo a PF e o MP.
R2) Brazil: Setbacks in the legal … com 35 páginas
Este relatório aponta claramente os retrocessos na estrutura Legal e Institucional Anticorrupção no Brasil. Os principais fatos apontados neste relatório são:
a) Presidente Jair Bolsonaro é investigado no STF por alegações de interferência na PF feitas pelo Moro;
b) Flávio Bolsonaro é investigado e apontado como líder de quadrilha que desviou dinheiro no RJ em conjunto com funcionários fantasmas;
c) O vereador Carlos Bolsonaro também é investigado por contratar funcionários fantasmas;
d) Interferência política na aplicação da lei pelas instituições, gerando contratempos significativos para o MP, a PF e o judiciário;
e) Procurador-Geral da República, Augusto Aras, em seu primeiro ano de mandato, demonstrou ousado alinhamento com o Presidente Bolsonaro. Aqui vale a pena lembrar que uma das atribuições do PGR é investigar e denunciar políticos como foro especial, incluindo o Presidente. Aras não estava na lista tríplice contendo os nomes dos mais votados em eleição interna feita no MPF, portanto a nomeação dele levanta fortes suspeitas das reais intensões do Mito;
f) membros da força tarefa da Lava Jato foram alvos de críticas do Augusto Aras, com tentativas de acessar o banco de dados existente em Curitiba que contém informações confidenciais das investigações;
g) a saída de dez procuradores da Operação Lava Jato de Brasília e SP devido à pressão e ao desacordo com as decisões administrativas do Procurador-Geral Augusto Aras. O parcial desmantelamento da Operação Greenfield que livrou Ministro Guedes e Temer, também causou a saída de membros da força tarefa desta operação;
h) decisão do STF sobre a prisão em 2a instância que beneficiou Lula (PT), Dirceu (PT), Eduardo Azeredo (PSDB) e que tem o potencial de beneficiar outros 4800 criminosos que estão presos;
Os fatos apontam retrocessos no Governo Federal, no Congresso, no MPF e no Judiciário. Ao final, o relatório faz recomendações de melhorias para cada um desses atores, sendo que uma recomendação chama a atenção: a de remover do alto escalão do governo, pessoas que estão sendo investigadas por corrupção.
Finalmente, para Sócrates, a sabedoria começa na reflexão, então que definição devemos dar para Pátria? Justiça? Dever? Ética? Virtude? Que país queremos? Será possível o Brasil melhorar tendo gestores cometendo os mesmos erros que os anteriores? É possível ter ordem e progresso em uma pátria governada pelos mesmos réus e condenados que causaram desordem e atraso ao longo do tempo?