14 de outubro de 2024

O ônus do bônus (parte 4)

Cumprindo o anunciado, num instantinho só estaremos chegando ao sopé desta estória, reconheça-se como de assunto pouco inédito, ao contrário bem trivial nos dias a correr mas sem corar. Sucede, quem nos pôs próximos dos contornos supostamente sórdidos bem sabia que iriamos como de costume entoar dizeres à moda de limpa-trilhos, não?

Comecemos. Comecemos pela figura de Flora, jovem arquiteta muito bem referida profissionalmente, há muito casada com o primo Belizário, algo idoso, mas bem sucedido empresário, a peso de notáveis advogados, e pais de um casal de filhos universitários, além de proprietários de vistosa residência fincada num dos bairros mais suntuosos da cidade.

Calhou de que, há meses, a longeva união passou estranhamente a mostrar que reclamava emenda, reconhecida mas não levada em conta pelo casal, subtraindo o respeito à fidelidade conjugal e inclinando-se a cair em precipitada separação judicial de corpos, passo que a rigor não consultava o pendor dos celebrantes, mas que se dobraram até por orgulho, ainda que bem presente certo ceticismo quanto ao rumo da decisão escolhida. Foi o que se colheu, ao prestar-se consultoria.

Parecia coisa feita. Não é mesmo o que se consagrou mais adiante? Sem avançar no relato desse ponto de agasalhar passagem mística, cuidemos para não minimizar o suspense, até porque se o rumo alcançar a natureza judicial, não há como se lidar com isso, já que por óbvio não se poderia chamar a juízo para depor quem sabe as notórias figuras do Xamantismo ou do âmbito da Feitiçaria, como Iemanjá, Iansã, Naná, Oxóssi, Ogum, Omulu, Ossai, Oxumaré e quem sabe a Mãe Joana. Credo!

Nesta altura, convém revelar que o casal andou atraindo malquerenças da parte de suas respectivas atividades profissionais ou mesmo pessoais, segundo nos foi relatado, com amparo em anotações a título de diário. Daí findarem por acreditar na aludida “coisa feita”. Vá saber!

A esposa nos nutriu que, quando solteiro, ou mesmo casado, Belizário andou promovendo derrame de lágrimas em incontáveis vítimas, sejam ex-funcionários que odiaram-no ao perder as causas trabalhistas movidas contra suas empresas, ou mulheres enganadas mesmo comprometidas, mágoas que acabaram por se traduzir no suposto malefício, creia-se querendo, assim reportado no mencionado diário, como segue:

“Começa que fui vítima de terrível maldade, juntamente com meu marido, precisamente um “despacho de magia negra” ou “macumba” enterrado no pátio da nossa casa, como fotografado, e que por ter sido mal dizimado por pessoa inabilitada, teve seus efeitos prolongados, ou mantidos, segundo quem disso entende. Sempre desacreditei em coisas assim, mas deve-se reconhecer que todas as religiões praticam o culto a espíritos. Logo, Jesus, Maria, os Santos e o mais, foram pessoas vivas e hoje são invocados em prol do Bem. Daí é um passo para se aceitar que existem seres desencarnados, assim chamados, voltados para o Mal a serviço de viventes cruéis. Pela dor dobrei-me a essa realidade. Naquela altura, começara então uma forte desavença entre nós, após muitos anos de amor e paz, culminando em tristes fatos, suspeitas e por fim uma precipitada separação judicial de corpos, que resolvemos promover.

Pragas voltavam-se contra preciosos valores pessoais nossos, sejam físico, moral e profissional. Ao lado de um fracasso empresarial, vultoso prejuízo que por pouco não aconteceu graças à desenvoltura de meu marido, ao lado de assessoria jurídica de monta, restou, contudo, uma das pragas que predizia perigosa doença, o que acabou se traduzindo numa séria moléstia, com suspeita de câncer, obrigando-o a hospitalizar-se e a submeter-se a tratamento cirúrgico, felizmente bem conduzido.

Apesar de tudo, com a irreverência e o bom humor de sempre, meu marido, aliviado do susto, ainda zombou do ocorrido, pois não o teria prejudicado quanto ao que ele preza tanto, que é ser filhento ao extremo (se diz remôso), como quando me engravidou a primeira vez (aliás, entende que virgindade limita-se ao útero imaculado). Foi surpreendente, pois meu organismo era tido como de impossibilidade de gestação.” (Continua)

Bosco Jackmonth

* É advogado de empresas (OAB/AM 436). Contato: [email protected]

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