10 de dezembro de 2024

Manaus, a perene ilusão do Fausto

Manaus 351 anos… a capital do Amazonas que registra duas oportunidades históricas de experimentar a prosperidade socioeconômica para sua gente. A primeira foi oferecida pela Árvore da Fortuna, a seringueira, de 1880 a 1910. O Brasil se limitou a exportador do produto in natura e a se abastecer seus cofres federais a maior parte do apurado da ocasião. Na segunda oportunidade, o programa Zona Franca de Manaus, com 53 anos de resistência, padece a voracidade da compulsão fiscal do país, que seguiu tratando a capital do Amazonas como seu paraíso fiscal, um verdadeiro Baú da Felicidade tributária. Por isso, seria hipócrita exaltar as virtudes da aniversariante sem anotar as mazelas de seus paradoxos e frustrações.

Benefícios e conquistas 

Pensando bem, o que podemos comemorar de concreto, do ponto de vista ético, à luz desta população que ocupa o cinturão de pobreza que cerca Manaus? O que ela alcançou em termos de benefícios, conquistas e cidadania no contexto da distribuição da riqueza aqui produzida ao longo da História?  Em seu livro emblemático sobre o Ciclo da Borracha, A ilusão do Fausto, a historiadora Edneia Mascarenhas Dias, professora aposentada da Ufam – uma paraense que fez das mazelas sociais da Amazônia, seu objeto de estudo – fala da Manaus que ficou registrada na memória da cidade e na historiografia das folias do látex : “Historiando os aspectos negativos, resultado dessa urbanização, aponta-se também na ‘Ilusão do Fausto’ uma cidade que, apesar de seu enriquecimento com a borracha e sua modernidade, conviveu com problemas sociais de toda ordem. O foco, a direção, a escolha, foram conduzidos por muitas leituras e pesquisas nas fontes documentais”. Ela fez a leitura sem molduras nem retoques desse período, aparentemente glamouroso, e trouxe à tona as mesmas sequelas que o Brasil nos impõe hoje com seus confiscos financeiros dos valores aqui conquistados e uma cangalha tributária insaciável, sem pudor nem contrapartida ao cidadão. 

A cidade oculta 

São passados mais de 130 anos da descrição feita na Ilusão do Fausto, constrangedora e realística, da Manaus oculta atrás da arquitetura da Belle Époque, o glamour só para alguns: epidemias, falta de saneamento, analfabetismo… Comparativamente ao Ciclo da Borracha, que gerava duas vezes mais receitas do que o Ciclo do Café, no Sudeste, a Manaus do terceiro milênio arrecada muito mais aos cofres públicos nos dias atuais. Assim como outrora, a gestão pública dos recursos é perdulária e socialmente perversa, quando analisados os IDHs do seu resultados. Trata-se de um estranho modo de produção onde o capitalista é o poder público. Karl Marx não acreditaria. E o que é mais grave: como não produz riqueza, esse modo de produção não precisa se preocupar em promover consumidores, a pilastra que movimenta a roda  da economia.  O mais complicado de tudo isso é a naturalização dessa desordem secular.

Descaso histórico

Quantos por cento da riqueza que Manaus produziu foi investido em infraestrutura de beneficiamento e industrialização da borracha? Zero.  Atualmente, ao recolher mais de 70% da riqueza aqui gerada por trabalhadores e empreendedores, o poder público federal repete a gestão descompromissada com a Amazônia, posto que em Belém nada foi diferente. Assim como se fazia a distribuição com a riqueza do látex,  os indicadores socioeconômicos do Amazonas de nossos dias não condizem com os R$148,5 bilhões pagos ao poder público pelo setor produtivo de 2000 até 2018. Deste valor, R$111 bilhões foram recolhidos aos cofres federais e apenas R$38,5 bilhões, o equivalente a 26% do total, ficaram para o Estado. Estes dados se baseiam no acompanhamento feito no período pelo tributarista Thomáz Nogueira. São recursos insuficientes para avançar nas transformações substantivas da paisagem social, com parques tecnológicos e biotecnológicos para múltiplas funções. Esses institutos seriam verdadeiras agências de sustentabilidade para utilizar recursos da diversidade biológica e mineral na geração de emprego, renda e autonomia fiscal da ZFM . 

A crueza da fome 

Entidades de classe da indústria, empresas instaladas em Manaus, seus trabalhadores e fornecedores, a propósito, experimentaram conhecer de perto a crueza da fome neste período de pandemia, ao coletar e distribuir 240 toneladas de alimentos aos segmentos empobrecidos da cidade. Como festejar Manaus se o cinturão de vulnerabilidade social que a comprime e constrange cresce a cada dia? Como conduzir essa deformidade crônica da gestão e distribuição de recursos aqui gerados senão alertar para a imoralidade que ela representa e para a necessidade do protagonismo civil como parte decisiva de um novo formato de governança tanto da riqueza como do bem-comum. Esta é a principal proposta da nova ZFM, desenhada a múltiplas mãos e mentes da Convergência Empresarial da Amazônia. Só assim a festa será justa e de todos, até o raiar de um novo amanhecer de Manaus, da Amazônia e do Brasil.

Alfredo Lopes

Escritor, consultor do CIEAM e editor-geral do portal BrasilAmazoniaAgora

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