Daniel Nascimento-e-Silva, PhD
Professor e Pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM)
A inferência é um artifício da inteligência muito presente na redação científica. Ela está presente desde o planejamento da investigação até a redação da versão final do manuscrito que será submetido a publicação. O desconhecimento desse recurso é uma das principais causas da recusa de publicação de produções científicas por parte de periódicos científicos. Mais ainda, a prática tem mostrado que quando as inferências são feitas, a revisão da literatura e a apresentação e discussão dos resultados, além de ficarem mais precisos e compreensíveis, fazem a redação ficar mais harmônica e elegante. Se você parar para pensar, a ciência é justamente isso, a relação constante e necessária do local com o universal, do empírico com o teórico, entendido o teórico como o estoque de conhecimento demonstrável e demonstrado mantido pela ciência. Uma redação que se afunda no local não é apenas chata, enfadonha, ela não tem sentido cientificamente. A razão disso é que fazemos ciência não para explicar o que está acontecendo em determinado lugar, mas para aferir ou não se aquela ocorrência localizada não está sinalizando com possibilidades efetivas de ampliar o estoque de conhecimento existentes, preenchendo lacunas ou ampliando as suas fronteiras. É desse diálogo entre o local e o universal que se encarrega o artifício da inferência.
Há dois tipos de raciocínios presentes em toda redação científica, que muita gente ainda mantém a tradição equivocada de considerá-los métodos científicos. Eles são artifícios do cérebro, de cognição. Métodos são etapas procedimentais com regras que as disciplinam. O primeiro tipo de raciocínio é o dedutivo, que chega a determinadas conclusões ou descobertas a partir da derivação e comparação de conhecimentos universais e particulares combinados. Se “Todo homem é mortal” e “Sócrates é homem”, a conclusão esperada é que “Sócrates é mortal”. “Todo” é um termo universal, que designa uma premissa (uma afirmativa) que engloba tudo; “Sócrates” é um caso específico de homem, enquadrado no termo “todo” da afirmativa global. Se Sócrates se enquadra no global, o predicado (o resto da afirmativa universal) também se lhe é aplicado. Então Sócrates é mortal. A ciência quase nunca usa esse esquema. A ciência é fatual, se baseia em fatos. E fatos são locais, específicos, ainda que sua quantidade seja infinita (é por isso que inventamos as amostragens e as probabilidades).
O outro tipo é o chamado raciocínio indutivo. É aqui que se enquadra a inferência. A ciência prefere a ideia de inferir porque se casa melhor com as notações matemáticas, estatísticas e probabilísticas. Induzir tem uma conotação de forçar a barra ou coisa parecida. O que acontece, aqui, é que a partir de casos locais reais que podemos explicar os seus comportamentos fazemos uma inferência para todo o universo. É isso mesmo, o universo, o que engloba júpiter, o sol, outras galáxias e tudo o que houver no universo, desde que apresentem aquelas circunstâncias explicadas empiricamente. Vejamos um exemplo. Vou a Parintins e vejo que todas as galinhas são cor de rosa por lá. A mesma coisa foi presenciada em Itacoatiara, Tabatinga e em mais 26 cidades amazonenses. Não vi nenhuma galinha de outra cor. Posso inferir, com chance de estar correto, que todas as galinhas dessas cidades são cor de rosa. Acontece que eu não vi todas as galinhas dessas cidades. Então há uma chance de eu estar errado. Essa chance é a probabilidade. Essa probabilidade pode ser calculada e conhecida.
Veja que coisa interessante. Eu não posso dizer que todas as galinhas amazonenses são cor de rosa. O motivo é simples: eu só pesquisei 29 das cidades amazonenses. Então o meu chute só vale para essas cidades. Posso falar alguma coisa das galinhas brasileiras e marcianas? Não. Não pesquisei por lá. Posso falar alguma coisa de pato? Não. Só pesquisei galinhas. Posso dizer alguma coisa sobre o sistema econômico e social das galinhas? Não. Só pesquisei as cores. Conclusão: não posso ir além dos meus dados.
E o que isso tem a ver com inferência? Tudo. Quando vou fazer a revisão da literatura, tenho que pegar tudo o que ela fala sobre as cores das galinhas. Tudo é tudo. Tenho que vasculhar os estudos de todos os países porque a ciência é universal. Seus estoques estão distribuídos em periódicos e acervos do mundo todo. Se você faz revisão só de estudos em português, você não pode fazer inferência que não seja para estudos em português. Se consultou apenas livros, sua inferência não pode ser considerada científica porque a ciência não está armazenada em livros. Se você não sistematizou de alguma forma a revisão, não pode inferir, porque a inferência depende da sistematização.
A mesma regra serve para a apresentação dos resultados. Não pode coletar dados sobre a estratégia de ensino e os resultados de aprendizagem e inferir que as políticas educacionais são misóginas. Os resultados empíricos sinalizam para uma lógica passível de ser detectada e compreendida a partir dos dados, mas sua generalização está afeta apenas àqueles dados locais. Generalizar até que é possível, mas sempre em forma de hipóteses e questões futuras de pesquisas do tipo “será que isso acontece em outros lugares?”. Mas ainda esse tipo de generalização hipotética tem que ser feita depois de comparado o resultado local com o estoque de conhecimentos científicos. É para isso que servem as discussões de resultados.
E como isso aparece na redação científica? Muita gente gosta de começar cada parágrafo com a descoberta, que é a inferência. Eu sou um deles. Eu começo meus parágrafos sempre com uma afirmativa do tipo “A revisão da literatura mostrou…” e imediatamente eu coloco um ponto. Em seguida eu mostro os meus dados, que são as fontes bibliográficas, comprovando o que foi inferido. E termino o parágrafo explicando o que aquilo parece (veja bem esse termo) dizer. A conclusão (toda redação científica tem que ter uma conclusão) é a inferência dessas inferências, que coincide com a resposta à pergunta de pesquisa global.