É normal que instituições políticas e jurídicas – ou aquilo que se convencionou chamar de Estado de Direito – passem por algumas turbulências e crises de tempos em tempos. A história do poder registra incontáveis formas de mudança para se buscar, no dia seguinte, algum tipo de ordem, estabilidade e convergência. Justamente por não ser um dado da natureza, uma dádiva da “Providência”, nas palavras de Tocqueville, o Estado de Direito é um regime frágil, cíclico e incerto. Em uma palavra: imperfeito.
E é no esteio da crise da democracia liberal atual que observaremos a ascensão do Estado de Exceção. O filósofo italiano Giorgio Agamben oferece na obra Estado de Exceção (Boitempo Editorial, 2004) uma análise densa e profunda sobre uma figura paradoxal e central da política moderna: o Estado de Exceção. Publicado como parte da coleção Estado de Sítio, coordenada pelo Prof. Paulo Arantes, o texto de Agamben aborda a transformação de um mecanismo jurídico extraordinário e excepcional em um paradigma de governança permanente, em um processo decisório ordinário.
O Estado de Exceção, tradicionalmente entendido como uma medida temporária para lidar com situações de emergência – como guerras, crises econômicas ou catástrofes humanitárias – transformou-se agora na suspensão do ordenamento jurídico usual. Agamben, todavia, argumenta que, ao invés de permanecer como um recurso excepcional, essa lógica passou a definir a atuação normal dos Estados democráticos. Em suas palavras, “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal.”
Ao utilizar dispositivos legais para justificar a supressão de Direitos e limites ao poder, os governos liberais modernos instauram um regime paradoxal: o uso da lei para suspender a própria legalidade, a constitucionalidade, as regras do jogo. Tal paradoxo, segundo Agamben, dissolve os limites entre democracia liberal e autoritarismo, colocando as instituições democráticas em uma zona cinzenta, onde política e direito se entrelaçam de maneira ambígua e contraditória – a politização do direito e a judicialização da política.
Para traçar a evolução do Estado de Exceção no século 20, Giorgio Agamben revisita os escritos de Carl Schmitt, um dos mais influentes teóricos do Direito do século passado, cujos estudos sobre ditaduras e soberania ajudam a compreender os fundamentos desse fenômeno. Em essência, a abordagem schmittiana defende que o soberano é aquele que decide sobre o Estado de Exceção, indicando que o poder de suspender a ordem é, em si, uma manifestação máxima do soberano. (e.g., Carl Schmitt e Max Weber foram ardorosos defensores do “Führerprinzip” ou Princípio da Liderança, dispositivo político-jurídico utilizado em larga escala pelos regimes totalitários).
Agamben amplia essa análise ao examinar mudanças constitucionais ocorridas recentemente nas democracias ocidentais, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, que institucionalizaram o Estado de Exceção como parte inerente de sua política diária. Ele aponta exemplos como a ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933; a criação do Patriot Act nos EUA após os ataques de 11 de setembro de 2001; e os abusos legais cometidos na prisão de Guantánamo, onde combatentes islâmicos foram classificados como “ilegais” para justificar a suspensão de seus direitos básicos.
A obra também mergulha em temas contemporâneos que ilustram essa nova normalidade dos dispositivos de poder excepcional. Entre eles estão as guerras preventivas; o uso de toques de recolher; a imposição de zonas de proteção em eventos internacionais; a concentração de poderes no executivo através de decretos e medidas provisórias, e a legitimação da violência estatal em nome das políticas de segurança pública.
Agamben denuncia como esses mecanismos corroem as democracias modernas ao subverterem o equilíbrio institucional e os direitos fundamentais. A transformação do Estado de Exceção em regra faz com que a política se afaste de suas bases populares, consolidando práticas de concentração e centralização de poder.
Uma das contribuições mais provocativas de Giorgio Agamben é a análise das relações entre direito e violência no contexto do Estado de Exceção. Ele observa como a suspensão das normas jurídicas cria uma “terra de ninguém” entre a legalidade e a força, permitindo que o poder atue de maneira desregulada e, muitas vezes, brutal. Essa dinâmica torna-se particularmente evidente em contextos de crise social, desigualdade econômica e polarização política, onde medidas de exceção passam a ser justificadas como inevitáveis ou indispensáveis.
A obra de Agamben é fundamental para compreender o funcionamento do Estado e da política contemporânea. Ao expor as áreas mais obscuras do direito e da democracia – aquelas que legitimam a violência e a suspensão de direitos em nome da segurança (em estrita obediência à lógica da securitização) – a obra Estado de Exceção ilumina os desafios e perigos enfrentados pelas sociedades modernas.
O livro não apenas fornece uma reconstrução histórica, mas também oferece uma poderosa crítica à lógica política que domina o mundo atual. Ele desafia os leitores a refletirem sobre os limites e as contradições das democracias contemporâneas, bem como sobre o futuro das liberdades e da soberania popular diante de um paradigma de governança cada vez mais baseado na exceção, e menos nas regras.
*é cientista político
Estado de exceção
Breno Rodrigo
É cientista político e professor de política internacional do diplô MANAUS. E-mail: [email protected]
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