Breno Rodrigo de Messias Leite*
A terceira e principal parte da obra “Os Índios e a Civilização” de Darcy Ribeiro tem como propósito fazer uma interpretação e um balanço para compreender o processo de “transfiguração étnica das tribos que mantiveram contato com a sociedade brasileira nos últimos sessenta anos”. Com efeito, estabelecer uma conexão entre a sociedade nacional (critérios civilizadores) e as etnias indígenas presentes na formação social do Brasil.
No que toca ao plano metodológico, Darcy Ribeiro estrutura o seu estudo na seguinte perspectiva: “estudaremos, primeiro, as formas e os efeitos das relações entre índios e não-índios, no plano ecológico. Passaremos depois, a um exame desta mesma integração no nível biótico, pelo exame do efeito da despopulação provocada por enfermidades transmitidas aos indígenas pelos agentes da civilização. Analisaremos, em seguida, estas mesmas relações em seus conteúdos tecnológicos e sócio-econômicos. Finalmente, estudaremos as relações entre índios e brasileiros enquanto entidades étnico-culturais e sócio-psicológicas com seus corpos de crenças, valores, hábitos e costumes”.
No processo de integração dos grupos indígenas à sociedade nacional decorre e se acelera a partir do século 20. Neste intervalo é possível identificar alguns traços característicos no que se refere ao grau de integração dos povos indígenas à sociedade nacional: são grupos isolados, grupos de contato intermitente, de contato permanente e totalmente integrado. O que condiciona o grau de integração dos grupos indígenas diz respeito a fatores linguísticos, econômicos, culturais e populacionais.
Desse fato, decorre o questionamento no que se refere ao que vem a ser um “indígena”, pois parte-se dessa dimensão para poder se pensar num processo de integração. “Indígena é, no Brasil de hoje, essencialmente, aquela parcela da população que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, em diversas variantes, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade de origem pré-colombiana que se identifica como etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com que está em contato”.
O impacto da pacificação foi extremamente nocivo à vida dos povos indígenas, visto que foram introduzidos a uma “forma de competição de nível ecológico”, antes mesmo de iniciar o processo de aculturação dos povos em relação à cultura original.
O convívio entre os índios e os civilizados possibilitou a contaminação de grandes contingentes indígenas devido ao contato. Doenças como enfisema pulmonar, doenças respiratórias, gripes, tuberculose, sarampo, gonorréia, varíola, malária entre outras condicionou o extermínio de milhões de índios ao longo do processo de civilização implantado pelos “civilizados brancos”. Isto é, “que um sistema social qualquer, mesmo o mais simples, só pode operar à base de um número mínimo de membros, o qual, uma vez diminuído impossibilita a vida social, dentro dos moldes tradicionais”.
O processo de “coerção socioeconômica” iniciado pelos civilizados, a fim de atrair os povos indígenas, se desdobra em vários aspectos da vida social, pois, os índios são integrados na forma de consumidores, como produtores e/ou como reserva de mão-de-obra. Nesse sentido, os equipamentos da civilização (técnicas e equipamentos modernos) exerceram um papel fundamental, bem como os utensílios de metal, ferramentas e armas. Por outro, a incorporação da lógica da economia mercantil manifesta na moderna divisão social, cultural, sexual do trabalho entre os grupos indígenas. Transformações na dieta dos índios com a incorporação de alimentos como o açúcar, sal e gordura.
Darcy Ribeiro formula uma teoria que se chama de “engajamento compulsório” que tem como propósito relacionar a estrutura econômica tribal e a nacional num mesmo ambiente. “O processo básico constituiu, portanto, uma violentação da vida econômica tribal e resultou na sua subordinação a uma economia mais ampla de caráter mercantil. Desde que tem início esse trânsito da autarquia à dependência, o destino das tribos passa a ser regido por uma vinculação externa tendente a se consolidar e a se tornar cada vez mais opressiva. A isto é que chamamos de engajamento compulsório para salientar seu caráter de dominação e sua natureza coercitiva”.
Ocorreu um processo de transformação de mentalidades, uma ruptura dos sistemas de valores, no ethos social das tribos e uma transfiguração étnica. Paralelo a isso, os indígenas sofreram com o processo de destribalização, marginalidade, migração, preconceito, opressão religiosa entre outros.
Daí o fato de que os indígenas, com o processo de civilização, sofreram com perdas materiais e simbólicas, na dimensão humana e na dimensão do mito, na transformação da vida tribal e na transfiguração étnica dos grupos indígenas. “Todos estes fatos demonstram que estamos diante de um progresso de transfiguração étnica que, em lugar de desembocar na assimilação, conduz ao descaminho de acomodações sucessivas que perpetuam a identificação tribal”.
Podemos dizer que as características gerais da obra de Darcy Ribeiro têm como propósito principal fazer uma interpretação histórica, antropológica e etnológica a partir do processo de contato entre índios e civilizados. Também discutir a formação do Brasil e da violência presente no processo de interiorização e ocupação de terras e da resistência étnica dos povos indígenas. Assim, Darcy Ribeiro formula um brilhante trabalho que envolve pesquisa histórica e antropológica.
*é cientista político e professor de política internacional do Diplô Manaus.
[JCAM, Manaus, AM, 17/08/2022]