O colapso da União Soviética, a pátria do socialismo iniciado na Revolução Russa de 1917, foi um duro golpe nas esquerdas nacional e internacional. Partidos políticos, movimentos sociais, intelectuais e países satélites dependentes passaram por um inferno astral sem precedentes. Uma coisa era certa: no curto prazo, a derrota era iminente, inevitável e irrevogável. Contudo, no longo, a estratégia de sobrevivência poderia surtir algum efeito prático no estratagema revolucionário global. E foi o que de fato aconteceu.
O otimismo em relação ao fim da URSS era enorme. Muitos intelectuais críticos do socialismo chegaram – tamanha era a ousadia diante daqueles anni mirabiles – a decretar o fim da história. Pretextos para tamanho otimismo eram categóricos à época: o fim da história representaria a emergência de uma ordem liberal e democrática universal vis-à-vis o desmonte do comunismo e outras formas de opressão genocida, autoritarismo estatal e violência política. Finalmente, teríamos aí diante dos nossos olhos, a realização de uma paz perpétua fecunda tanto do ponto de vista das unidades nacionais quanto da ordem internacional como um todo.
A utopia não durou muito e os imperativos realistas (egoístas, conflitivos e anárquicos) voltaram a dar as cartas no jogo internacional e no interior das nações. Até mesmo José Guilherme Merquior, o intelectual brasileiro mais relevante do último quartel do século XX, caiu nessa falácia histórica ao afirmar, com todas as letras, que o “marxismo estava morto”, algo que já se provou um wishful thinking historicamente equivocado.
O impacto do fim do socialismo soviético na América Latina e na Europa ocidental, inicialmente, não assumiu contornos apocalípticos tal como os acontecimentos no Leste Europeu. Nessa parte do globo, o assim chamado “marxismo ocidental” floresceu rapidamente numa sofisticada operação intelectual e política iniciada em maio de 1968 nas rebeliões estudantis em Paris.
As obras da Escola de Frankfurt, de Gramsci e Lúkacs, de Sartre e Althusser, de Marcuse e Habermas, de Foucault e Thompson, entre tantos outros, formaram, em diferentes contextos, as bases intelectuais para se pensar a nova esquerda adaptada aos novos tempos, às novas lutas ideológicas, às estratégias pós-soviéticas. (Duas obras, em especial, dão conta de identificar parte substantiva do cânon do marxismo ocidental: a do já citado diplomata brasileiro José Guilherme Merquior, em seu livro “O Marxismo Ocidental”, publicado originalmente em 1985; e a do filósofo e esteta inglês Roger Scruton, em “Pensadores da Nova Esquerda”).
A militância política não ficou para trás. Novos partidos foram criados (abandona-se, em definitivo, o termo “partido comunista”, A Internacional e o símbolo da foice e do martelo); movimentos sociais ganham muito mais protagonismo, principalmente na era das redes sociais; e os coletivos passaram, de fato, a ter relevância nas guerras de narrativa e mobilização pública.
Em suma, a esquerda soube aproveitar muito bem os espaços garantidos pelas democracias liberais – substantivamente pluralistas e abertas ao conflito legítimo pelo voto – para consolidar uma estratégia de ocupação dos espaços políticos dentro das regras do jogo, ou seja, dentro das regras constitucionais dos regimes democráticos.
Assim, em termos gramscianos, uma característica marcante do marxismo ocidental: a esquerda, num movimento, deixa de lado a “guerra de movimento” (a causa revolucionária da tomada do poder pela via armada) e a substitui pela “guerra de posição” (processos eleitorais, fundação de partidos, respeito às constituições etc.). E parafraseando Marx, a crítica das armas passa a ser a arma da crítica.
Em resumo: houve uma substituição da estratégia universalista da luta de classes pela estratégia das agendas específicas identitárias, impulsionadas muito mais por conflitos redistributivos, como o ambientalismo militante e os modos de desenvolvimento sócio-ambiental; a agenda étnico-racial e a inserção social de negros e indígenas; o feminismo e o papel da mulher; a ideologia de gênero; o veganismo, transespecismo e o direito dos animais, linguagem neutra e a corrupção da língua pátria, entre outras pautas. O sujeito histórico do marxismo – o proletariado ou classe trabalhadora – fora destronado do processo histórico e o império das subjetividades identitárias colocado no seu lugar.
A sofisticada operação da intelligentsia (classe falante ou classe dos intelectuais) fora sutil, quase imperceptível para a população. O exame dos temas da linguagem e do seu controle passou despercebido (não podermos nos esquecer da ideia de novilíngua de George Orwell). Aos poucos a deterioração estética, a revolução sexual, o relativismo moral, o ativismo favorável à legalização das drogas e o politicamente correto demonstraram, portanto, que a operação intelectual, como um projeto muito bem pensando e realizado, atingira os seus principais objetivos.
No livro “A Cultura da Reclamação: o desgaste americano”, de 1993, o ensaísta Robert Hughes registra tal espírito do tempo: “à medida que se difunde para a arte a reação lacrimosa contra a excelência, a ideia de discriminação estética é metida no mesmo saco com a de discriminação racial ou de gênero. Poucos se rebelam contra isso, ou notam que, em questões de arte, ‘elitismo’ não significa injustiça social e nem inacessibilidade” […]. Continua Hughes no mesmo passo: “como nossa recém-descoberta sensibilidade decreta que só a vítima pode ser o herói, também o homem branco americano começa a berrar pelo status de vítima”. Uma vez mais, a profecia de Discepolo, autor do tango “Cambalache”, se cumpriu: “Todo es igual, nada es mejor”.
Como uma imagem borrada vista num espelho, o futuro da esquerda já começou e pode ser vislumbrado no tempo presente. As sucessivas vitórias da esquerda identitária nos países centrais – mais democráticos e economicamente prósperos, e não mais em países pobres e subdesenvolvidos como nas antigas revoluções – referendam globalmente a aplicação de agendas próprias do seu esquema político-ideológico. É o bom e velho efeito manada, tão comum nos processos disruptivos, e que tem funcionado a contento na formulação e implementação de agendas globais por meio de governos nacionais e organismos internacionais, num sistema de governança, em muitas partes do mundo. O identitarismo é um fenômeno bastante complexo e tem garantido, até agora, o futuro da esquerda