11 de dezembro de 2024

Bolsonaro, Lula e a lógica da guerra

O processo eleitoral brasileiro está relativamente definido e bem encaminhado para o seu desfecho. O colapso da Terceira Via com Sérgio Moro, a estagnação de Ciro Gomes nas pesquisas, o esvaziamento deliberado da candidatura de Simone Tebet e a implosão do tucanato de João Dória, contribuíram para a consolidação, na liderança isolada, do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e, logo atrás, do atual presidente Jair Messias Bolsonaro. Neste momento da corrida eleitoral – tudo o mais constante – não consigo ver, no médio prazo, alternativas possíveis aos dois. A conclusão tautológica a que chego é: a vitória será de um ou de outro.

Assim, é natural que os líderes das pesquisas eleitorais, ao contrário dos outros candidatos, sejam interpelados pelos jornalistas, pelos grupos de interesses especiais e pela opinião pública acerca dos temas relevantes para o futuro da nação, sobretudo os temas relacionados à guerra e à paz, bem como os seus efeitos nas relações internacionais. Assim, o conflito armado iniciado pelos russos na Ucrânia não poderia passar ao largo do debate eleitoral que escolherá o próximo presidente da República. Afinal das contas, o presidente é o responsável pelo direcionamento da política externa como política pública governamental e da diplomacia como grande estratégia em defesa do interesse nacional vis-à-vis as ameaças causadas pela instabilidade do sistema internacional.

Até recentemente – e refiro-me aqui ao início da redemocratização brasileira – os partidos, os presidentes da República e as lideranças da sociedade civil possuíam alguma estratégia de inserção internacional do país. A busca da autonomia e do desenvolvimento; a defesa dos direitos humanos como valor universal; e o ativismo internacional a respeito da questão ambiental foram esforços permanentes dos governos brasileiros até então.

O Estado Normal e o Estado Logístico (Amado Cervo), Autonomia pela Participação e a Autonomia pela Diversificação (Gelson Fonseca Jr.), Americanismo, Globalismo e Institucionalismo Neoliberal (Leticia Pinheiro) funcionaram como modelos de compreensão da estrutura da realidade, bem como projetos de integração da agenda internacional brasileira no mundo da globalização e do pós-Guerra Fria. Mutatis mutandis, a inteligência diplomática serviu como bússola de ação internacional da política exterior brasileira. Nada muito coerente tampouco coesa e fidedigna à agenda normativa e acadêmica, mas traduziam aqui e acolá significados objetivos e reais da condição política que o país enfrentava.

MDB e PSDB, os partidos que conduziram em larga medida a política externa nos últimos trinta anos, foram mais ou menos coerentes nas suas ações internacionais. O PT, por seu turno, introduziu muitos elementos, conceitos e princípios alinhados à orientação ideológica do partido. Resumidamente, a lógica de engajamento do PT foi essencialmente terceiro-mundista, ao passo que a dos dois primeiros esteve condicionada às agendas das potências globais.

A beligerância russa no território ucraniano explicitou uma aparente contradição na percepção das lideranças presidenciais a respeito das relações internacionais do país: os dois líderes das pesquisas nutrem simpatias pessoais por Vladimir Putin e pela causa russa, embora internamente, no jogo eleitoral, sejam inimigos íntimos. A convergência de Bolsonaro e Lula em relação a agressão russa à soberania ucraniana mistura três percepções do conflito armado e seus possíveis efeitos no Brasil.

Em primeiro lugar, estão os interesses do principal setor da economia brasileira: agricultura. Os russos respondem por 22% das 39 milhões de toneladas de adubos importados pelo Brasil. Na cesta de produtos está a ureia (nitrogenado), MAP (fosfatado), nitrato de amônio e potássio, itens fundamentais para a segurança da logística dos alimentos no Brasil e no mundo. A dependência de tais insumos agrícolas faz com que o Brasil precise manter sempre uma política de boa vizinhança com a maior potência nuclear do leste europeu. 

Em segundo lugar, deve-se observar os interesses estratégicos e permanentes do Brasil no Brics, o acrônimo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O grupo concluiu, em 2022, 16 anos de parcerias estratégicas. Os números do Brics são superlativos: possuem 40% da população mundial em quatro continentes, concentram aproximadamente 25% do PIB da economia internacional e controlam de 15% a 20% do fluxo comercial global. Para além dos indicadores macroeconômicos, o Brics são, na definição de George Kennan, monster countries e potências militares que buscam desafiar a capacidade de liderança dos EUA no mundo com a construção de um sistema internacional multipolar, e não tão somente multilateral e unipolar.

Por fim, mas não menos importante, está o antiamericanismo congênito dos dois candidatos. O antiamericanismo do capitão é recente e se deve fundamentalmente a saída de Trump e entrada de Biden na presidência dos Estados Unidos. Bolsonaro via no nacional-populismo em Donald Trump uma oportunidade única de parceria e de confrontação contra os organismos multilaterais – a arquitetura do globalismo, na retórica bolsonarista –, cuja governança global (defendida majoritariamente por líderes do Partido Democrata) ameaçaria os interesses nacionais, sobretudo das nações emergentes como o Brasil. Já o antiamericanismo de Lula é ideologicamente mais profundo e vê a própria existência dos EUA como uma ameaça permanente às esquerdas, aos movimentos civis e à revolução.

A vitória eleitoral de um ou de outro dificilmente alterará o status quo do Brasil diante do conflito armado. Não faz sentido para o interesse nacional tomar partido, se posicionar abertamente ou, pior ainda, ter algum protagonismo político ou militar no campo de batalha. Bolsonaro e Lula devem, portanto, buscar a via diplomática da cooperação, da negociação e da neutralidade. E, claro, dentro do possível, tirar alguma lição, pois afinal também estamos à sombra do império e as ameaças à soberania nacional são contínuas. Michel de Montaigne, numa profunda reflexão sobre a ética marcial, afirma que “quanto à guerra, que é a maior e mais pomposa das ações humanas, eu gostaria de saber se queremos usá-la para provar alguma prerrogativa nossa ou, ao contrário, para testemunhar nossa debilidade ou imperfeição.” Por ora, nada de novo no front.

*é cientista político e professor de política internacional do Diplô Manaus (curso preparatório para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, CACD). Email: [email protected]

[JCAM, Manaus, 01 de junho de 2022]

Breno Rodrigo

É cientista político e professor de política internacional do diplô MANAUS. E-mail: [email protected]

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