11 de dezembro de 2024

Amazônia, o Desafio da Complexidade (III): Saúde Pública

Como desenvolver com eficácia políticas públicas idênticas num território continental imenso como do estado do Amazonas? Mais ainda, considerando as distâncias enormes diante de uma logística fragmentada e precária. Evidente que é mais difícil contemplar os habitantes dos municípios distantes com efetividade similar à da capital, da própria  Zona Metropolitana de Manaus e de outras cidades menos longínquas. Além disso, com as raras exceções de Coari e de Presidente Figueiredo, a atividade econômica dos municípios amazonenses é insuficiente para gerar receitas expressivas para as Prefeituras, que dependem basicamente das transferências de F.P.M (federal) e de I.C.M.S (estadual). Ou seja, os municípios quão mais distantes estiverem de Manaus, possuem maiores os custos operacionais, logísticos e de bens de consumo e esta realidade afeta diretamente a qualidade de vida de seus habitantes. Uma das situações mais alarmantes é a da Saúde. Pretendo brevemente expor razões da necessidade de uma política pública setorial diferenciada, que apoie de modo proporcionalmente mais justo a população dos municípios mais distantes.

Fui morador do município de Envira por mais de 16 anos, desde 1977. Junto com minha família enfrentei as mazelas de uma cidade que, na época, não dispunha de um único médico, nenhum profissional de enfermagem e que o sonho de um hospital parecia uma mera utopia. Doenças graves como febre tifoide, hepatite B e D, malária, sarampo, graves infecções gastrointestinais e respiratórias, dentre outras, eram comuns e tiravam a vida de muitas pessoas, inclusive crianças e jovens. Eu exercia originalmente as atividades de professor e de agricultor, presenciando cenas desoladoras e dramáticas, como a morte de um homem com tétano, por falta da vacina antitetânica e a viagem de barco de uma mulher em trabalho de parto com o braço de uma criança para fora do útero. Esta mulher milagrosamente não foi a óbito, porque socorrida em Tabatinga, mas seu filho não sobreviveu.

Para mim foi um grande choque observar – e vivenciar com minha família – o abandono quase absoluto da Saúde Pública em Envira. Este quadro era parcialmente minorado pela assistência do pároco local, Padre Theo Ferfers, num pequeno “consultório” no qual atendia as pessoas doentes com medicações oriundas da Alemanha. Eu, que vinha de uma família, onde contávamos com a assistência permanente do irmão de minha mãe, tio Sérgio, não sabia o que era ser privilegiado por um “médico da família” na própria família. O contraste com Envira era tremendo. Por isso, no meu primeiro mandato de Prefeito a prioridade absoluta da minha gestão foi estruturar a Saúde Pública no município e com apoio do Governo do Estado, conseguimos a construção de um hospital equipado. E, além disso, o contrato do primeiro médico, Dr. Renato Di Gasperi, que até hoje reside em Envira, e de outros profissionais, principalmente da área de enfermagem.

Posso afirmar que nestes últimos 40 anos houve um avanço significativo na saúde pública de Envira e de outros municípios distantes do Vale do Juruá e outras regiões do estado, especialmente após o advento do SUS – Sistema Único de Saúde, a partir da redemocratização do país. No entanto, estes avanços foram proporcionalmente maiores em cidades próximas de Manaus e na própria capital. Para um ex-prefeito que teve de buscar em Manaus um vacinador contra o sarampo que tirava a vida das crianças, não é possível deixar de reconhecer a importância do PNI – Programa Nacional de Imunização, provavelmente o mais importante programa de saúde preventiva já implantado no Brasil – e também na Amazônia. Ocorre que outros programas importantes ainda não alcançaram o mesmo êxito nas regiões mais ermas do estado. Destaco o altíssimo índice de letalidade de mulheres por câncer de colo de útero, que coloca o Amazonas, ao lado do Amapá, como os dois estados brasileiros recordistas nesta triste estatística. Mas além deste triste exemplo, podemos citar muitos outros, como as diabetes e suas complicações, os problemas cardiovasculares, as hepatites, as infecções de modo geral, dentre outras mazelas. Todas estas patologias, em regra, são menos prevenidas e possuem tratamentos menos efetivos nas cidades do interior, principalmente as situadas em regiões de difícil acesso. 

As injustiças sociais não se resumem às causas de renda, gênero e de origem étnico-racial… Elas também possuem uma relação direta ao que convencionei conceituar como a “exclusão pela geografia”. Apesar dos esforços de instituições como as Forças Armadas, o Ministério da Saúde, as secretarias estaduais e municipais e algumas organizações não governamentais, pode-se afirmar sem medo de errar, que os cidadãos residentes em cidades e comunidades mais longínquas pagam um alto preço por conta da saúde pública defasada. Observa-se a deficiência de uma prática mais eficaz de controle epidemiológico, como se comprova nos entristecedores índices de mortalidade infantil em diversas aldeias indígenas e comunidades de populações tradicionais. Os investimentos na prevenção e no tratamento das doenças ainda são insuficientes e muitas vezes desviados de suas finalidades. 

Este breve “recorte” de um quadro de injustiça social, de exclusão, de mortalidade e todo tipo de sofrimento, não se deve à falta de dedicação dos profissionais que atuam em municípios do interior. Estes merecem nosso respeito e nosso reconhecimento, pois são fundamentais para a implementação de muitas ações valiosas. Mas basta verificar o custo de uma passagem aérea entre Eirunepé e Manaus, ou o custo de deslocamento de Japurá para nossa capital, e fica nítido e evidente porque as condições de saúde da população da absoluta maioria dos amazonenses que habitam a “Amazônia Profunda” são inferiorizadas. Nesse sentido, em contraposição, menciono um trabalho do qual participei ativamente quando atuava na Fundação Amazônia Sustentável – a FAS: a implantação do Programa de Saúde na Floresta. Este programa é um exemplo de política de saúde voltada para as populações mais isoladas, com destaque para os mais de 60 pontos de telessaúde que funcionam em comunidades tradicionais e aldeias indígenas, com internet e energia solar, propiciando atendimento médico, psicológico e de enfermagem. Penso que cabe ao Poder Público fazer mais e melhor do que uma ONG injustamente criticada por promover o bem no interior do nosso estado.

Luiz Castro

Advogado, professor e consultor

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