O mês de março terminou com o anúncio pelo Serviço Geológico do Brasil/CPRM do 1º Alerta de Cheias de Manaus – 2021. Avizinha-se uma cheia de grande magnitude. O rio Negro já chegou, em 31 de março, aos 27,28 m e projeta-se alcançar, em junho próximo, a cota máxima de 29,45 m (intervalo entre 28,55 a 30,35 m).
Tal monitoramento hidrológico permite, através de suas projeções estatísticas, que as autoridades planejem suas ações e estratégias de atendimento emergencial às populações ribeirinhas manauaras. A partir dos 27,50 m (cota de inundação), tais moradores já são atingidos pela cheia; e acima de 29 m (cota de cheia severa), as águas do Negro invadem terrenos no Centro da cidade, como a rua dos Barés, praça da Matriz, entre outras áreas portuárias de grande movimentação comercial e de passageiros.
Em minhas aulas sobre o Ciclo das Águas, sempre apresento fotos do acervo histórico da Cheia de 1953, ano em que o rio Negro atingiu 29,69 m. Trazem, em preto e branco, as passarelas construídas sobre ruas alagadas, um cuidado do setor público para com seus cidadãos, pessoas de chapéu, mui bem vestidas, transitando e vivendo o urbano manauara da década de 1950.
A cidade de Manaus teve que reconhecer e se adaptar a cultura e natureza de conviver com o rio que sobe e desce, variando, entre a cota da vazante e cheia, mais de 16 metros, o equivalente ao tamanho de um edifício com mais de seis andares. Mal percebemos a grandeza do trabalho e fenômeno hidrológico. O processo é lento, diário, as praias aparecem, somem, é natural, nos adaptamos…
A “menina” que faz chover
A palestra da geocientista do Serviço Geológico do Brasil, Dra. Luna Gripp, foi muito didática. O anúncio do primeiro Alerta de 2021 (31 de março), na forma de live, resultado do trabalho em parceria com o Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) e as Defesas Civis federal, estaduais e municipais, demonstra o papel público da Ciência como instrumento político de Estado, que, no caso do Serviço Geológico, está definido na missão constitucional: “gerar e disseminar conhecimento geocientífico com excelência, contribuindo para melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento sustentável do Brasil”.
A pesquisadora ressaltou que, desde 2009, eventos críticos relacionados às cheias no rio Negro têm se repetido com mais frequência (entre os dez maiores eventos registrados no período de monitoramento, desde 1902, seis cheias severas ocorreram e estão concentradas a partir de 2009, sendo em 2012 a maior delas, o rio Negro alcançou sua maior cota histórica: 29,98 m).
São efeitos de mudanças e fenômenos climáticos, a exemplo do La Niña. A menina (La Niña) é um fenômeno relacionado ao esfriamento das águas do Oceano Pacífico, que margeiam o continente sul-americano, provocando um período climático com maior quantidade de chuvas na bacia hidrográfica amazônica.
A “força da menina que chora”, em cada ano hidrológico, está correlacionada aos períodos com cheias de grande magnitude. Tal esclarecimento foi feito pelo meteorologista do SIPAM Renato Cruz Senna, ao nos informar, durante o Alerta, que a região amazônica está sob o efeito “da menina chorona” desde o último trimestre de 2020. Os recentes eventos críticos observados no Acre e a provável cheia severa (80% de chance de ocorrer) que se confirma em Manaus, acenderam a luz amarela dos especialistas, autoridades e manauaras.
No último artigo ressaltei, a partir do compartilhamento de Manifesto das associações dos funcionários e pesquisadores do Serviço Geológico do Brasil/CPRM, a denúncia de falta de transparência com que a atual diretoria executiva vem conduzindo o processo de reestruturação da empresa.
Infelizmente, tem faltado sensibilidade ao Governo Federal na percepção do papel estratégico do investimento público em Ciência e Tecnologia, que, sem orçamentos robustos, ou melhor, com orçamentos cada vez mais limitados, há alguns anos, tem perdido um dos patrimônios do Estado brasileiro: seu capital de produzir conhecimento made in Brasil, em prol do Brasil.
Ao tempo em que a pandemia nos ceifa, em média, 125 brasileiros a cada hora, o principal líder do Governo Federal insiste em viver num “mundo da lua” da reeleição. Mesmo tendo um cosmonauta como assessor direto, permanece e continua alijado daquilo que recomendam os institutos científicos e do que se pôde aprender, no trágico legado de fatos vivenciados em Manaus, pela falta de insumos no período da segunda onda epidemiológica, em janeiro último.
O atual colapso nacional do SUS demonstra que há um limite, uma capacidade máxima brasileira de resposta pública e/ou privada à pandemia. Se ultrapassamos tal limite, com as contribuições da sanidade de líderes e liderados, não fomos capazes de olhar para o janeiro manauara como os filhos ouvem, ou deveriam ouvir, as recomendações de seus pais, responsáveis mais velhos.
Será que nada aprendemos com a pandemia, enquanto sociedade, com tanto conhecimento disponível, com tantos erros/acertos cometidos? Os números já não são trágicos o suficiente?
A promoção de saúde pública à população brasileira passa pela capacidade de investimentos em orçamentos planejados, bem aplicados e pelo respeito aos profissionais, empregados públicos e da iniciativa privada, que desenvolvem inovações científicas, como as vacinas, e/ou nos atendem, prontamente, no ato heroico de salvar vidas.
A “menina” pode até “chorar” muito, mas graças ao conhecimento público, do Estado brasileiro, produzido pelos geocientistas envolvidos, os impactos e prejuízos socioeconômicos, a cada ano de Alerta das Cheias, são cada vez menores. Como manauara de coração desde 1994, nossa gratidão, respeito e solidariedade ao trabalho do Serviço Geológico do Brasil/CPRM.
Como prestadora de serviço à Nação e à sociedade, entre tantas modalidades de importantes serviços, tal medição dos regimes das águas no maior rio do Mundo e nos seus muitos afluentes, é o aviso preventivo de maior precisão na Amazônia. Por isso, também o Serviço Geológico do Brasil/CPRM não pode ser extinto.